O Brasil nos tempos de El Niño, por Marcelo Leite

Publicado em 20/04/2014 09:21
na Folha deste domingo
 

Recebeu pouca atenção no Brasil a notícia de que 2014 tem mais de 50% de chance de se tornar um ano de El Niño. Pelo potencial de dano para o país que encerra, o fenômeno –mesmo que ainda incerto– deveria levantar ao menos algumas sobrancelhas.

Para quem nunca ouviu falar ou não se lembra do Niño catastrófico de 1997-98: trata-se do aquecimento incomum do oceano Pacífico junto à costa oeste sul-americana, que prejudica a pesca no Chile e no Peru, em geral pela época do Natal (daí o nome em espanhol, "o Menino" [Jesus]).

Um oceano aquecido, com ventos alísios mais fracos de leste para oeste, implica mais evaporação e formação de nuvens. As tempestades características do Pacífico Central e Ocidental passam a cair também na porção oriental do oceano.

Mais que isso: toda a circulação atmosférica (ventos e chuvas) da faixa equatorial do planeta é perturbada. O Brasil não sai incólume de tamanha anomalia.

Por essas razões, estudiosos do clima monitoram de perto as temperaturas da superfície do Pacífico, por meio de boias automáticas. Com base na evolução dos dados nas últimas semanas, que mostram um aquecimento rápido, a Noaa (agência para oceanos e atmosfera dos Estados Unidos) anunciou há seis dias que o risco de El Niño a partir de julho ultrapassou 50%.

O Escritório de Meteorologia da Austrália adotou previsão mais alarmista. No dia 8, já estimava em 70% a possibilidade de ocorrer o desvio. Embora nem todo El Niño provoque estiagens naquele país, os australianos enfrentam uma das piores secas de sua história e têm motivo para se preocupar.

O mesmo seria recomendável por aqui. El Niño costuma causar muito estrago no país todo. A começar pelo Sul, onde provoca chuvas torrenciais e enchentes.

O Sudeste pode sair relativamente ileso, com ligeiro aumento de temperatura (inverno ameno e menor ocorrência de geadas), mas sem alteração significativa de chuvas. O Centro-Oeste pode ter leve aumento de precipitação, para alegria dos plantadores de grãos, soja à frente.

As boas notícias param por aí. No Norte e no Nordeste, El Niño acarreta enorme dano, com secas graves. Na Amazônia, a estiagem propicia a ocorrência e a propagação de incêndios florestais. Em Roraima, em 1997-98, cerca de 40 mil km² (o equivalente a dois Estados de Sergipe) sucumbiram às chamas.

Por coincidência, nesta semana o periódico científico americano "PNAS" publicou estudo sobre a vulnerabilidade da floresta a secas e fogo, realizado em Querência (MT). Estive presente na primeira vez em que pesquisadores brasileiros e gringos atearam fogo ao mato, em 2004. Sua conclusão é que a combinação dos dois flagelos (estiagem e incêndios) favorece a substituição da floresta fechada por um cerrado, com mais gramíneas que árvores.

A situação mais preocupante é a do Nordeste, contudo. A região mais pobre do país já padeceu, em 2012 e 2013, com a pior seca dos últimos 50 anos, segundo a Organização Meteorológica Mundial (WMO, na abreviação em inglês). Em algumas áreas do semiárido, a diminuição de chuvas pode alcançar até 80% do total do período chuvoso.

O país todo vai torcer pela seleção brasileira em junho e julho. É melhor aproveitar a ocasião e torcer também, muito, contra El Niño. 

 

Clima de desalento, editorial da Folha deste domingo

O impasse internacional na questão do aquecimento do planeta nunca ficou tão claro quanto na terceira e última parte do Quinto Relatório de Avaliação (AR5) do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima). Um abismo separa as recomendações desse corpo de especialistas e a realidade da economia mundial.

Para os 235 autores de 57 países que finalizaram o relatório, o primeiro do IPCC desde 2007, os governos precisam tomar já medidas para diminuir as emissões de gases do efeito estufa. Até 2050, a redução teria de alcançar algo entre 40% e 70% sobre os níveis de 2010.

Sem isso, a atmosfera evoluiria para uma situação de alto risco. Haveria provável aumento na frequência de eventos climáticos extremos, como as secas que assolaram Nordeste e Sudeste do Brasil (para não falar da Califórnia e da Austrália), ou como as enchentes amazônicas no rio Madeira.

Convencionou-se que 2°C é o limiar de elevação da temperatura média global que seria imprudente ultrapassar. Para mitigar tais riscos é que se exigem as reduções aventadas pelo IPCC.

Idealmente, os cortes nas emissões já deveriam ter sido iniciados. Mas o processo de negociação da Convenção do Clima, aprovada em 1992 no Rio, andou muito mal até aqui. Divergências entre países ricos, emergentes e pobres sobre repartição de responsabilidades e custos da mitigação deram em becos sem saída.

Com isso, mais a revitalização dos combustíveis fósseis propiciada pelo boom do gás de xisto nos Estados Unidos, as emissões seguiram crescendo, em vez de cair. E, pior, num ritmo até mais rápido do que em décadas anteriores.

De 2000 a 2010, a taxa de incremento ficou em 2,2% ao ano. Nos três decênios anteriores, a média anual havia sido de 1,3%. Vale dizer, a economia mundial pisou mais fundo no acelerador do aquecimento global, mesmo com a crise de 2008/2009.

Para alcançar até 2050 a pretendida diminuição de emissões, ela teria de começar no máximo em 2020. Ora, se o mundo seguiu na contramão pelos últimos 22 anos, como esperar que em apenas seis possa reverter tal curso, em especial quando a Europa e boa parte dos países pelejam para reviver economias que patinam?

O corte nas emissões exige nada menos que uma revolução energética, em direção às fontes renováveis. Não é algo que se possa obter em uma ou duas décadas, sobretudo porque demandará investimentos que poucas nações se acham em condições de realizar.

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Fonte:
Folha de S. Paulo

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