Brasil - Geografia Agrária da Crise dos Alimentos

Publicado em 27/03/2009 11:10 e atualizado em 02/03/2020 11:30

A problemática agrária volta a ocupar as manchetes dos grandes meios de comunicação e a agenda política em todos os níveis. Manifestações populares em vários países do mundo contra o aumento dos preços dos alimentos parecem ter acordado aqueles que acreditavam que a questão agrária havia sido superada pela revolução nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia impulsionada pelas grandes corporações. Dois processos socio-geográficos de fundo, a princípio independentes entre si, além das mobilizações acima indicadas merecem destaque para compreender a centralidade da questão agrária nos dias que correm: (1) a recente intensificação da urbanização do mundo e (2) a crise de abastecimento e controle das fontes de combustíveis fósseis. Vejamos cada um a sua vez.

(1) a recente intensificação da urbanização do mundo

No ano de <?XML:NAMESPACE PREFIX = ST1 />2007, a ONU registrava, pela 1ª vez, que a população urbana do planeta se nivelara à população rural (em 2001, a população Rural era de 53% contra 47% de população urbana). E, mais importante ainda, 70% da população urbana mundial estão localizados no chamado 3° mundo onde os sistemas de proteção social são historicamente precários ou simplesmente inexistentes. Estes países viram seus governantes aceitarem os conselhos dos organismos internacionais para que abandonassem qualquer veleidade de proteção social de sua gente. Independentemente de qualquer mudança na proporção de distribuição da renda entre ricos e pobres, o fato é que um aumento na população urbana implica necessariamente numa ampliação do mercado, haja vista não ser amplamente generalizável no âmbito urbano a produção de alimentos para autoconsumo. Assim, a vida urbana, mantidas inalteradas as relações sociais e de poder, implica numa maior mediação do dinheiro. Além disso, como já antecipara Karl Kautsky no início do século XX, a urbanização implica também no aumento do consumo de carne que, hoje, se apresenta com efeitos ainda mais intensos no mundo agrário pelas condições (im)postas pela revolução nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia, revolução essa denominada simplificada e equivocadamente como revolução verde (Ver Porto-Gonçalves, 2006). É que a produção de carnes vem implicando num aumento significativo da demanda de grãos (milho e soja) para a alimentação animal. Assim, vem aumentando a disputa de terras para produzir alimentos para os animais e para os seres humanos. Em 2007, para uma produção mundial de 2.129 milhões de toneladas de grãos a parte destinada ao consumo humano foi de 47,4% do total e, assim, 52,6% se destinava ao consumo animal e a outros fins, inclusive a produção de combustíveis a partir de biomassa. Segundo o médico veterinário Dr. Silvio Negrão, “na média, os suínos precisam comer 3 Kg de ração e os frangos de corte 2 Kg de ração para que cada um transforme esse alimento em 1 Kg de seu corpo”. A ineficiência de conversão de energia em proteínas para consumo humano via produção de carnes mostra a (ir)racionalidade da submissão da produção de alimentos à regras do mercado (Ver Negrão, 2008).

De todo modo, esse processo exerce uma poderosa influência no aumento do preço da terra. Em reportagem de Cláudio Dantas Sequeira publicada pelo jornal Folha de S. Paulo em 08-06-2008, as terras agricultáveis se valorizaram em média 10,16% ao ano entre 2000 e 2006, sendo 15,66% em Mato Grosso, tomando como fonte o Centro de Estudos Agrícolas da FGV. Em 2007, de acordo com dados do Instituto FNP, o preço médio das terras subiu 17,83%. (Estado de S. Paulo, 26/09/2008). O valor atual é recorde: US$ 2636 o hectare. Segundo o mesmo instituto, a região do Alto do Araguaia, na divisa com Goiás, é a que mais se valorizou em 12 meses: 117,7%. Em parte esse aumento se deve à procura de estrangeiros por terras no Brasil, como demonstramJosé Garcia GasqueseEliana Teles Bastos em artigo para a revista Agronews da Fundação Getúlio Vargas, onde registram que as terras nos EUA estavam cotadas pelo dobro do preço do Brasil. “Para os brasileiros a terra é cara, mas para o estrangeiro é uma bagatela. Isso tende a restringir o acesso do brasileiro à propriedade rural" afirmou Profa. Francisca Neide Maemura, da Universidade Estadual de Londrina.

(2) a crise de abastecimento e controle das fontes de combustíveis fósseis

Por outro lado, a derrota política estadunidense na ofensiva militar contra o Iraque associada às vitórias de governos que recusam a agenda neoliberal em países que dispõem de importantes jazidas de gás e petróleo (Venezuela, Bolívia e Equador) ou onde há resistências populares significativas (povo Ogoni na Nigéria, Afeganistão e Colômbia) desencadeou uma preocupação com a soberania energética pelos EEUU que, por sua vez, procura se legitimar tomando para si uma causa - o aquecimento global – que, até recentemente, se colocavam frontalmente contra, mas agora brandindo a bandeira dos biocombustíveis (Ver Porto-Gonçalves, 2008). Fidel Castro que num primeiro momento ficara sozinho na denúncia do que significava substituir a produção de alimentos para as pessoas pela produção agrícola de combustíveis para os automóveis se vê, agora, contemplado com o acalorado debate acerca do aumento dos preços dos alimentos, inclusive sob os auspícios da ONU. Independentemente das diferenças na eficiência de conversão de biomassa em combustíveis (que comprovadamente é maior no caso do etanol da cana em relação ao milho e outras fontes) o fato concreto é que também aqui se coloca uma maior demanda por terras, o que por si só tem enormes implicações na problemática agrária, a começar pelo inegável aumento no preço da terra.

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Embora outras razões se juntem à crise que se manifesta no aumento nos preços dos alimentos, como secas e inundações, e a especulação por empresas que monopolizam o comércio mundial de alimentos, de adubos, fertilizantes e sementes que vêem na crise ótimas oportunidades de negócio e que se fortalecem na medida em que o alimento deixa de ser produzido em casa e passa a ser mediado nas bolsas (Chicago e outras), locus de mediação do poder dessas empresas[1], a problemática agrária se coloca também no centro de um debate geopolítico na medida em que diferentes setores do capital procuram lançar mão do trunfo territorial representado pelos diferentes Estados. Para isso, os diferentes países com suas riquezas naturais têm que ser defrontados a partir das suas diferentes geografias tendo como sine qua non conditio o seu potencial de desenvolvimento técnico-científico sem o que estão impedidos de jogarem o jogo nessa escala global de poder.

A qualidade dos territórios dos diferentes estados joga aqui um papel fundamental, sobretudo quando se considera a disponibilidade de águas e terras agricultáveis (fertilidade e topografia, esta última qualidade sobretudo pela economia de energia relacionada aos relevos planos, o que é extremamente relevante quando se trata de um modelo agrário/agrícola energívoro, isto é, baseado no grande consumo produtivo de energia). É o que se pode ver no Mapa 01 – Águas e Terras Disponíveis por País – onde o Brasil se apresenta numa posição de destaque[2].


Mapa 01

O Quadro 01 – Disponibilidade de Terras Aráveis por País – reitera a informação anterior ao situar o Brasil como o país de maior disponibilidade de terras e águas.

 

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No caso da América do Sul destacam–se, ainda, a Argentina, a Colômbia, a Bolívia e a Venezuela. Registremos que o complexo técnico-científico-agroindustrial-financeiro-midiático de poder implicado no modelo agrário/agrícola no caso brasileiro e argentino implica, ainda, na disponibilização das terras paraguaias e bolivianas haja vista que não se pode compreender os processos socioespaciais que se desenvolvem nesses países dissociados desse bloco de poder que se estrutura a partir do Brasil e da Argentina. Os conflitos recentes envolvendo os agronegociantes bolivianos, em franca oposição ao governo Evo Morales na Bolívia, e os que envolvem camponeses sem terra que apóiam o governo Fernando Lugo no Paraguai, em franca oposição aos agronegociantes estrangeiros (leia-se, brasileiros), são parte desses conflitos que ultrapassam as fronteiras nacionais não só pelos protagonistas implicados diretamente, mas também pelo enorme significado que essa região tem no contexto geopolítico de elevadíssima demanda de terras que acima configuramos. São fartas as notícias que apontam a chegada de capitais de origem européia, estadunidense e japonesa comprando terras no Brasil, Argentina e, até muito recentemente na Bolívia e no Paraguai, pelas oportunidades que se abrem de captar renda e aumentar a apropriação de mais valia. Reportagem do jornal Valor de 28/08/2008 afirma que empresas estrangeiras planejam investir US$ 1 bilhão na compra de terras no Brasil, o que lhes permitirá comprar 4 milhões de ha, 5% das terras agricultáveis do país. Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pelo controle do cadastro de terras no país, mostram que, nos últimos sete meses, 203 mil hectares de terras foram parar nas mãos de estrangeiros. Esses números, segundo o próprio presidente do Incra, certamente estão subestimados, porque os cartórios não são obrigados a registrar separadamente as terras compradas por estrangeiros e repassar as informações para o órgão. Hoje, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pelo menos 5,5 milhões de hectares estão nas mãos de estrangeiros.

O resultado disto é que, apesar da enorme disponibilidade de terras, reconhecida, como vimos, até mesmo pelos intelectuais e lideranças dos agronegociantes, não se configura uma real política de reforma agrária, ao contrário, o aumento nos preços da terra torna mais caras as desapropriações de terras, bem como torna mais difícil acordos relativos à compra de terras, uma vez que os proprietários tendem a negociar em situação mais favorável.

Assim, reforça-se a tendência que já vinha se estabelecendo de criação de novos assentamentos na Amazônia, uma vez que é nesta região que as terras são mais baratas e em sua quase totalidade são terras públicas. Disto decorrem duas conseqüências: de um lado, um descolamento geográfico entre a mobilização dos trabalhadores rurais sem terra no Brasil – que se concentra no Centro-Sul – e a política de assentamentos – que se concentra na Amazônia; de outro, substitui-se a reforma agrária pela colonização de novas áreas. (Ver Alentejano, 2004). Ademais, a precariedade da própria política de colonização, disfarçada de assentamentos, estimula a grilagem de terras (Ver Oliveira, 2007 a , 2007b e 2007c), isto é, apropriação de terras ao arrepio da lei, que faz das áreas de expansão mais do que uma região de fronteira, como comumente vem sendo chamada, inclusive nos meios acadêmicos, mas como um verdadeiro front de batalha no preciso sentido militar de origem da expressão, onde impera a violência, processo muito semelhante ao que se deu no oeste dos EUA na segunda metade do século XIX e tão bem retratado nos filmes de faroeste.

Estamos, ao contrário, diante de um processo de anti-reforma agrária quando se observam os dados de evolução da área plantada no Brasil nos últimos 16 anos (entre 1990 e 2006). Se tomamos três produtos típicos da agricultura empresarial – a cana, a soja e o milho – que estão implicados nos processos acima descritos de uma agricultura voltada para a produção de combustível (cana e soja) ou para alimentação animal (milho e soja) observamos que a área total plantada passou de 27.930.805 hectares, em 1990, para 41.198.283 hectares, em 2006, um aumento de 47,5%. Quando observamos a área total destinada à produção de três produtos característicos da cesta básica de alimentação do brasileiro – o arroz, o feijão e a mandioca - notamos que a área total diminuiu de 11.438.457 hectares para 9.426.019 hectares, ou seja, uma queda de 17% no mesmo período. Enquanto todos os produtos destinados à produção de combustíveis (cana e soja) ou à alimentação animal e só indiretamente às pessoas (soja e milho) aumentaram, todos os produtos destinados à cesta básica viram sua área diminuir no período.

Se, pelo menos a princípio, parece correta a crítica do governo brasileiro ao etanol produzido a partir do milho, sobretudo nos EUA, uma vez que se trata de deslocamento direto áreas destinadas à produção de alimentos para a produção de combustível, ao contrário do etanol à base de cana-de-açúcar, também é verdade que há impacto indireto da expansão da cana em relação à oferta e preço dos alimentos, pois vem ocorrendo sensível redução da área destinada à plantação de alimentos assim como um deslocamento geográfico dessa produção.A substituição de plantios de arroz, feijão e milho por plantios de cana está ocorrendo em várias regiões, como o oeste paulista, o Triângulo Mineiro, o sul de Goiás. Isto, de um lado, provoca a pura e simples redução da oferta destes alimentos, mas de outro provoca também o deslocamento destas culturas para terras de pior qualidade e mais distantes dos principais mercados consumidores, o que significa aumento dos preços, dados os maiores custos de produção e frete. Além disso, a corrida por terras no Brasil, motivada pela febre dos agrocombustíveis e pelo avanço da agricultura para alimento do gado, produz aumento do preço das terras, o que também impacta o preço dos alimentos, uma vez que o aumento da renda da terra rebate no preço dos alimentos.

É o que se pode verificar com a nova geografia que se vai desenhando no mundo agrário brasileiro (Figuras 1 a 6 e Gráficos 1 a 6) onde, a partir dos próprios dados oficiais do IBGE, verifica-se a expansão da área plantada com cana, soja e milho e a redução da área plantada com arroz, feijão e mandioca.

A Figura 1 e o Gráfico 1 indicam que a cana teve forte expansão da área plantada no país no período, com aumento de 43%. E embora a maior parte da cana concentre-se na região Centro-Sul (região onde passou de 63 para 78% do total plantado no país), a região onde mais cresceu proporcionalmente a área plantada no período foi a Amazônia (121% de aumento). Em termos absolutos, a maior expansão da área de cana-de-açúcar verificou-se nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul.

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Gráfico 1 - Evolução e distribuição espacial da área plantada de Cana-de-açúcar (1.000 ha) - Brasil - 1990-2006

mapa 04

A soja (Figura 2 e Gráfico 2) também vai se deslocando dos estados do Paraná e Rio Grande do Sul, onde é plantada sobretudo por pequenos e médios produtores, para Mato Grosso do Sul, Goiás, Mato Grosso e Maranhão onde os grandes latifúndios monocultores empresariais de exportação se destacam. O Gráfico 2 indica que a área plantada com soja no Brasil cresceu 91% no período 1990-2006, sendo que o maior crescimento verificou-se na Amazônia (319% !!!) que já responde hoje por quase 1/3 da soja produzida no país (Figura 2).

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Gráfico 2 - Evolução e distribuição espacial da área plantada de Soja (1.000 ha) - Brasil - 1990-2006

mapa 06

Merece destaque ainda, o avanço dessa mesma soja pelos cerrados do Piauí e Bahia que muito contribuiu para que a região Nordeste também tivesse um aumento altamente significativo de sua área plantada com soja, que passou de 3% para 5% no mesmo período. Os Mapas 2 e 3 abaixo evidenciam este processo.

Mapa 2 – Brasil – Produção de Soja – 1996 e Mapa 3 – Brasil – Produção de Soja - 2006

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O mesmo movimento geográfico e social se pode observar com o cultivo de milho que, como sabemos, está fortemente associado à criação de frangos e porcos[3]. A Figura 3 indica que também no caso do milho foi na Amazônia que se verificou o maior crescimento na área plantada durante o período 1996/2006, tanto em termos absoluto como relativo.

Figura 3 – Variação regional da área plantada de Milho – Brasil - 1990-2006

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Fonte: IBGE – Pesquisa Agrícola Municipal

Gráfico 3 - Evolução e distribuição espacial da área plantada de Milho (1.000 ha) - Brasil - 1990-2006

mapa 09

Por outro lado, verificamos que o modelo agrícola que vem se impondo nas últimas décadas no país, implica a redução da área plantada dos produtos alimentícios da cesta básica dos brasileiros, especialmente nas regiões capitalisticamente mais desenvolvidas, como se pode ver pelo decréscimo da área plantada com feijão e arroz no Centro-Sul.

No caso do arroz (Figura 4 e Gráfico 4) houve uma queda de 27,6% na área plantada em todo o país, entre 1990 e 2006 (de 4.158.547 hectares para 3.010.169 hectares), sendo que, contraditoriamente, na região Nordeste, onde a fome é mais generalizada, ocorreu a maior redução ainda.

Figura 4 – Variação regional da área plantada de Arroz – Brasil – 1990-2006

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Gráfico 4 - Evolução e distribuição espacial da área plantada de Arroz (1.000 ha) - Brasil - 1990-2006

mapa 11

No caso do feijão (Figura 5 e Gráfico 5), o mesmo acontece, com a redução generalizada da área plantada de 5.306.257 ha em 1990 para 4.245.480 ha em 2006, sendo que neste caso a maior redução verificou-se no Centro-Sul.

Figura 5 – Variação regional da área plantada de Feijão – Brasil - 1990-2006

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Gráfico 5 - Evolução e distribuição espacial da área plantada de Feijão (1.000 ha) - Brasil - 1990-2006

mapa 13

A área plantada com mandioca apresenta a mesma geografia social em que as regiões capitalisticamente mais avançadas não são aquelas em que o cultivo dos gêneros alimentícios destinados à cesta básica são de interesse. Todavia, a Figura 6 e o Gráfico 6 indicam um aumento significativo da participação da Amazônia no cultivo da mandioca, com o avanço de uma frente camponesa que ocupa a floresta, fazendo da região a maior produtora do país.

Figura 6 – Variação regional da área plantada de Mandioca – Brasil - 1990-2006

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Gráfico 6 - Evolução e distribuição espacial da área plantada de Mandioca (1.000 ha) - Brasil - 1990-2006

mapa 15

Isto é a expressão do processo apontado anteriormente de contra-reforma agrária, onde os latifúndios monocultores de exportação concentram-se no Centro-Sul e empurram para a Amazônia a agricultura camponesa, sendo que a atual política de assentamentos consagra este modelo perverso.

A expansão verdadeiramente espetacular da área plantada com cana de açúcar no centro mais dinâmico do país, além de conviver com a diminuição do cultivo de produtos da cesta básica nessa região, está avançando, sobretudo em áreas antes destinadas a pastagens, como bem sinalizaram os intelectuais e lideranças ligadas aos agronegociantes, conforme o Quadro 2 abaixo, cuja autoria é desses think thanks do agribusiness como gostam de ser chamados

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A substituição de pastagem pelo cultivo de cana necessariamente desloca o gado para outras áreas que, no caso, tem sido para a região Centro Oeste e para a Amazônia, cujos efeitos retomaremos adiante. Com a expansão do fenômeno da urbanização e o aumento do consumo de carne bovina esta também vem se constituindo numa commodittie e, com isso, estamos assistindo a um avanço espetacular da criação de gado, sobretudo em áreas antes cobertas pela floresta (Ver Porto-Gonçalves, 2007).Do aumento de 40% do rebanho bovino ocorrido no país entre 1990 e 2006 (de cerca de 147 milhões de cabeças em 1990 para aproximadamente 206 milhões de cabeças em 2006), 80,8% desse aumento ocorreu na Amazônia que passou de 26 milhões para 73 milhões de cabeças de gado em 2006,um crescimento de 181%, ou seja, a região praticamente triplicou seu rebanho e já representa mais de 1/3 de todo o rebanho brasileiro (Gráfico 7).

Gráfico 7 - Evolução e distribuição espacial do rebanho bovino (1.000 cabeças)
Brasil – 1990-2006

mapa 17

Assim, verifica-se que a temida pecuarização da Amazônia, apontada pelos críticos desse modelo nos anos 1970 e 1980, está se consagrando substituindo a floresta pela pata do boi, conforme os mapas 04 e 05. A geografia do modelo de desenvolvimento agrário brasileiro incontestavelmente está colocando em risco a floresta, as populações camponesas, inclusive quilombolas e os povos originários.

MAPA 04 – Brasil –Pecuária – 1996 e MAPA 05 – Brasil – Pecuária - 2006

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Assim vemos se reproduzir ampliadamente no espaço geográfico brasileiro o Complexo de Violência e Devastação (Porto-Gonçalves, 2007), a outra face de Janus do perverso processo de modernização do agro brasileiro, onde terras que são formalmente de responsabilidade do Estado são apropriadas de modo fraudulento (grilagem) num processo que, aliás, sempre caracterizou a expansão para novas áreas (vide o avanço da fronteira em São Paulo, Paraná, Goiás, Espírito Santo e Minas Gerais ainda no século XX). O recente avanço no Mato Grosso, Pará, Tocantins e Maranhão vem ainda associado à demanda por carvão vegetal para a purificação (ferro gusa) do ferro, commoditie que, deste modo, vai sem rejeitos para o primeiro mundo à custa da queima da floresta. Não à toa a Amazônia, junto com o Nordeste, foram as regiões onde mais se expandiu a produção de madeira no Brasil nos últimos anos. O aumento que foi de 114% no conjunto do país; de quase 25 vezes no Nordeste, que passou de 0,6% para 7,6% do total da produção brasileira, e triplicou na Amazônia que passou de 2,9 para 5,6% do total, ao passo que no Centro-Sul, embora a produção tivesse crescido 92,9%, a participação no total do país caiu de 96,4% para 86,8% do total.

Gráfico 8 - Produção de Madeira – Brasil – 1990-2006

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Assim, a grilagem das terras se combina com a queimada para fazer carvão e, completando o complexo de violência e devastação, vem a criação do gado e também o cultivo de soja. Enfim, o que vem sendo apontado como uma conjuntura de grandes oportunidades para os agronegociantes vem se dando por meio da reprodução de um modelo tipicamente moderno-colonial de violência e devastação que marca a formação territorial do Brasil.

Não é à toa que a Amazônia é o locus da violência privada no campo brasileiro, somando 875 assassinatos em conflitos pela terra entre 1985 e 2005, 62% do total de pessoas assassinadas no campo nestes vinte e um anos, praticamente 2/3 de todos os 1415 assassinatos verificados no período.

Gráfico 9 – Assassinatos no Campo por Região – Brasil – 1985 a 2005

mapa 20

O aumento da demanda por terras está por trás também do aumento dos conflitos envolvendo populações tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, faxinalenses, retireiros, geraizeiros, enfim diferentes formações camponesas com suas qualidades características desenvolvidas junto às peculiaridades dos nichos dos distintos biomas brasileiros) por ações de expulsão das famílias dos territórios que ocupam há dezenas ou centenas de anos. Embora as ações de expulsão contra essas populações tradicionais venham se dando, sobretudo nas regiões do Planalto Central e na Amazônia, não constituem fenômeno específico dessas regiões. Há que se considerar a complexidade que conforma o espaço geográfico, inclusive nas suas configurações ecológicas, posto que as regiões topograficamente mais acidentadas, ou mesmo planas, mas com restrições de uso de água e de baixa fertilidade natural (chapadas e chapadões), ou áreas de difícil acesso, foram historicamente ocupadas seja por camponeses ou quilombolas, ou ainda por populações indígenas, inclusive nas regiões sul e sudeste do país (faxinalenses e quilombolas). As extensas regiões planas e com restrições de uso de água do Planalto Central brasileiro, com as novas tecnologias de captação de água em profundidade por meio dos pivôs centrais, vêm sendo particularmente objeto da sanha dos latifúndios empresariais para implantação dos monocultivos seja de soja, de eucalipto e outras commoditties, já que por serem áreas planas implicam menores gastos com energia, o que é fundamental para um modelo agrário/agrícola com base em empresas latifundiárias com intenso uso de energia.

No caso da produção de madeira para papel e celulose, o movimento de expansão é reforçado pelas enormes vantagens comparativas da produção desta matéria prima no Brasil, onde o tempo de corte chega a ser 1/3 menor que nos países de clima temperado. Assim, são inúmeras as notícias que dão conta do fechamento de fábricas de papel e celulose na Europa e transferência das mesmas para o Brasil. (O Estado de S. Paulo, 20-09-2008.) Como resultado disso, entre 2005 e 2007 a área plantada de Pinus e Eucalipto cresceu de 5.241.775 ha para 5.985.396 ha, um aumento de 14% em apenas três anos (www.abraflor.org.br).

No que se refere à produção, no período 1990-2006, houve um aumento de 67% no conjunto do país, destacando-se o crescimento da produção no Nordeste (mais de 60 vezes), cuja participação passou de irrisórios 0,04% para 13,8% do total do país, sobretudo com a devastação da Mata Atlântica do Sul da Bahia para instalação de grandes empresas papeleiras na região.[4] Apesar disto, o Centro-Sul ainda concentra mais de 80% da produção nacional.

Gráfico 10 - Produção de madeira para papel e celulose – Brasil – 1990-2006

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Enfim, o espaço geográfico brasileiro está atravessado por fronts de batalha com o espraiamento dos conflitos (Cadernos de Conflitos CPT, 2007) que não se restringem à Amazônia, mas se espalham por todo o país, pelas diferentes formas de expansão do modelo agrário/agrícola – a cana se expande em SP, MG, GO e MS pela logística já disponível para a expansão da produção do etanol; a soja se expande nos planaltos centrais com suas chapadas e pelo fato de ser a “caixa d´água” do país, ou seja, onde nascem os principais rios do país; o gado se desloca para a Amazônia assim como a produção de carvão para exportar ferro gusa tudo isso tendo os agronegociantes como seus principais protagonistas e beneficiários.

Assim, podemos perceber que todos estes aspectos estão interligados e se queremos preservar a Amazônia para as gerações futuras, pelo que ela representa em termos de biodiversidade e fonte de água e umidade para o Brasil e o mundo, temos que inverter completamente a lógica em andamento. O ponto de partida dessa solução é a reforma agrária, e não a política de assentamentos em curso hoje no Brasil sob o nome de reforma agrária. Em primeiro lugar, a reforma agrária deve ser feita nas regiões Centro-Sul e Nordeste, mediante a atualização dos índices de produtividade, mas, sobretudo da efetivação do princípio da função social na sua integralidade, isto é, não só a dimensão produtiva, mas também a trabalhista e a ambiental. Em segundo lugar, a produção nos assentamentos de reforma agrária deve ser orientada para a produção de alimentos básicos, com mecanismos de garantia de compra e preços de forma a contribuir diretamente para a segurança alimentar. Deve ser ainda concebida com base em princípios agroecológicos, de forma a não reproduzir a elevada dependência energética da agricultura convencional e os impactos socioambientais. O próprio caráter descentralizado da produção de alimentos que nos proporcionaria uma nova geografia derivada de um amplo programa de reforma agrária possibilitaria reduzir os absurdos custos de frete de um modelo agrário/agrícola que leva a que se transporte feijão – que pode ser produzido em praticamente todo o território brasileiro – a 4 mil quilômetros de distância. Por último, a própria produção descentralizada de agrocombustíveis combinada com a produção de alimentos, em assentamentos de reforma agrária, articulada a pequenas agroindústrias voltadas para a transformação local da produção, poderia também contribuir para um melhor aproveitamento energético dos próprios agrocombustíveis, além de garantir maior autonomia para as comunidades locais.

Portanto, do ponto de vista dos movimentos sociais que se dedicam à luta pela reforma agrária não se trata de descartar os agrocombustíveis, mas de rejeitar o atual modelo de produção que reproduz o falido modelo de produção agropecuário da revolução verde, baseado em extensas monoculturas, com uso intensivo de máquinas e insumos químicos que embutem elevados gastos energéticos, além da violência como prática estruturante de sempre.

O Brasil expõe de modo emblemático o caráter contraditório do processo de modernização/colonização, expressão cujos termos equivocadamente temos usado separadamente. O sistema mundo moderno-colonial (I. Wallerstein e A. Quijano) que nos constitui desde 1492 se atualiza, se mostra atual, atuando com os dois lados de sua mesma face – a tecnologia de ponta e as relações sociais e de poder que melhor permitam a maior acumulação de capital, onde matar e desmatar constituem práticas irmãs. Ao contrário do que nos ensinam nas escolas e nas universidades, o Brasil (assim como Haiti e Cuba) não era, nos séculos XVI e XVII, exportador de matéria prima, mas sim de açúcar, produto manufaturado, a maior commodittie da época, e para produzi-lo não havia nenhuma manufatura tão moderna como os nossos engenhos de açúcar, tal e qual, hoje, as mais modernas máquinas e implementos do agribusiness, nome novo para uma prática quincentenária, nos mostra cabalmente que a modernidade não necessariamente nos traz progresso, liberdade e justiça social. Somos modernos há 500 anos! A colonialidade sempre foi constitutiva da modernidade! A ideologia da modernidade bem vale uma missa! (Dr. Carlos Walter Porto-Gonçalves e Dr. Paulo Alentejano)

 

Fonte: América Latina em movimiento



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América Latina em movimiento

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