Os limites da soberania popular, por Rodrigo Constantino

Publicado em 24/11/2014 12:35

Coluna
Rodrigo Constantino
 

Benjamin Constant

“O assentimento da maioria não basta, de modo algum, em todos os casos, para legitimar seus atos.” (Benjamin Constant)

Na história da humanidade, temos inúmeros casos em que um pequeno número de homens, ou mesmo um só, na posse de imenso poder, causava um mal enorme. Muitos, agindo de boa fé na defesa da liberdade, voltaram sua ira contra os possuidores do poder e não contra o próprio poder. Em vez de destrui-lo, pensaram apenas em deslocá-lo. Surgiu assim o dogma da soberania popular, concedendo poderes ilimitados ao povo. A democracia passou a ser um fim em si mesma, como se a vontade da maioria tornasse qualquer ato, por mais absurdo que seja, correto.

Benjamin Constant, um suíço descendente de franceses que viveu durante os complicados anos do Terror e de Napoleão, combateu duramente esta idéia do ilimitado poder popular. Sua grande preocupação foi criar mecanismos que agissem como moderadores dos poderes, buscando sempre limitar seu grau a ponto de não invadir as liberdades individuais, que não devem estar sujeitas ao assentimento da sociedade. Constant era um republicano defensor de um poder neutro, que, na linha de Montesquieu, deveria manter o equilíbrio e a concórdia entre os poderes, sendo imparcial diante dos conflitos políticos. Suas idéias não perderam a atualidade, e seria muito útil que este autor fosse mais estudado, principalmente em um país que carece de um respeito maior às liberdades individuais.

O que se deve acusar, segundo Constant, é o grau de força, e não os depositários dessa força. A soberania do povo, sendo ilimitada, cria um grau de poder demasiado grande, o que representa um mal por si mesmo, quaisquer que sejam as mãos em que for posto tal poder. Em suas palavras, “é contra a arma e não contra o braço que convém ser severo”. Há uma parte da existência humana que, necessariamente, permanece individual e independente, e que está de direito fora de qualquer competência social.

Para Constant, Rousseau desconheceu essa verdade, e seu erro fez do seu contrato social, tantas vezes invocado em favor da liberdade, o “mais terrível auxiliar de todos os gêneros de despotismo”. Como a ação que se faz em nome de todos está, queira-se ou não, à disposição de um só ou de uns poucos, o poder concedido acaba nas mãos dos que agem em nome de todos. O resultado prático dos ideais de Rousseau foi o Terror vivido pelos franceses após a Revolução Francesa.

Ainda na opinião de Constant, de nada adianta apenas dividir os poderes se a soma total do poder for ilimitada. Os poderes divididos, assim, só necessitariam formar uma coalizão, e o despotismo seria irremediável. Ele afirma: “O que nos importa não é que nossos direitos não possam ser violados por certo poder, sem a aprovação de outro, mas que essa violação seja vedada a todos os poderes”. Há objetos sobre os quais o legislador não tem o direito de fazer uma lei. Nenhuma autoridade é ilimitada, nem a do povo, nem a dos homens que se dizem seus representantes.

Os cidadãos possuem direitos individuais independentes de toda a autoridade social ou política, e toda a autoridade que viola esses direitos se torna ilegítima. Para Constant, esses direitos são a liberdade individual, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, na qual está incluída a sua publicidade, o gozo da propriedade e a garantia contra toda e qualquer arbitrariedade. A soberania do povo é circunscrita em limites que lhe traçam a justiça e os direitos dos indivíduos. A vontade de todo um povo não pode tornar justo o que é injusto. Não é a quantidade de adeptos que torna um ato justo ou não. A Alemanha nazista ou o comunismo soviético são provas disso.

Os pensamentos de Benjamin Constant têm muito a contribuir para a formação de uma nação mais justa e livre. Muitos confundem democracia com um fim, ignorando que esta é apenas um meio para outros objetivos, como a preservação das liberdades individuais e a igualdade perante a lei. Aristóteles também viu os riscos da democracia uns trezentos anos antes de Cristo. Ele perguntou, em seu livro Política: “Se, por serem superiores em número, aprouver aos pobres dividir os bens dos ricos, isso não seria uma injustiça?”. Claro que a resposta é afirmativa. O uso da força jamais será um poder legítimo, independente da quantidade de beneficiários da espoliação.

Um país que considera o MST um “movimento social”, que vê no Estado a via para uma “justiça social” obtida na marra, que disputa mais e mais privilégios à custa dos discriminados e que deposita na jovem – e algumas vezes capenga – democracia a fonte de um poder ilimitado para o “messias salvador”, precisa muito refletir sobre os ensinamentos de pessoas como Aristóteles e Benjamin Constant. Afinal, até mesmo a tal soberania popular precisa de limites.

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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Fonte: Veja

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