A IMPLOSÃO DO PLEBISCITO, editorial do Estadão

Publicado em 05/10/2010 12:09

"Não é fácil obter 50% de votos do povo brasileiro no primeiro turno." Foi como se defendeu o presidente Luís Inácio Lula da Silva, percebendo para que lado sopravam os ventos, já na manhã da jornada eleitoral de domingo. E defender-se ele precisava porque não só nos palanques a céu aberto, mas nas inumeráveis reuniões a portas fechadas com o comando da candidatura Dilma Rousseff, fartou-se de vangloriar-se da vitória no primeiro turno. 

Ofuscado por essa certeza, produzida pela euforia que o inebriou desde que a sua escolhida desbancou o tucano José Serra da liderança nas pesquisas, Lula subestimou o grau de autonomia de uma fatia expressiva do eleitorado que se guia pelo senso crítico. Foi quando passou a ocupar o centro das atenções, em detrimento da própria candidata, exibindo a incontinência verbal que lhe é peculiar quando lhe pisam os calos. Na sua fúria contra a imprensa, por ter ela revelado os escândalos das violações de sigilos fiscais na Receita e a esbórnia na Casa Civil de Erenice Guerra, ele se esqueceu de que o "Lulinha, paz e amor" foi o que o conduziu ao Palácio do Planalto.

Ao expor ao eleitorado o lado feral de sua personalidade política, ele evocou antagonismos que viriam a ser um dos fatores cruciais para remeter a disputa a 31 de outubro. O papel de Lula, portanto, foi decisivo, até aqui, de duas maneiras contraditórias. De um lado, mostrou-se capaz de carrear 47 milhões de votos para uma noviça desprovida de carisma, de quem a esmagadora maioria da população nunca tinha ouvido falar até pouco tempo atrás. Mas, de outro, por se achar invulnerável, acabou contribuindo para privá-la de um consagrador triunfo imediato.

De novo por se achar acima do bem e do mal, tardou a lançar ao mar o fardo Erenice. Quando o fez, a imagem de Dilma já tinha sido atingida pelos estilhaços da festança familiar da sua sucessora na Casa Civil, dando início a um movimento de migração de votos - principalmente para a verde Marina Silva. Serra, que terminou com cerca de 33% dos votos válidos - mais perto que os adversários daquilo que previam as sondagens -, se beneficiou por tabela, recuperando a vantagem que perdera no Estado de São Paulo.

Foi a presença do tema corrupção no noticiário que alimentou a onda verde. A começar dos jovens, crescentes setores do eleitorado passaram a se interessar por Marina como portadora da utopia do século 21: a defesa de uma causa nobre - a luta contra o aquecimento global e pelo progresso social - encarnada numa figura de excepcional integridade, com uma história de superação pessoal ainda mais comovedora que a de Lula. Ironicamente, na candidata identificada com o futuro que as novas gerações desistiram de esperar da política dos negócios, como sempre desaguaram também os votos do eleitorado conservador.

Nesse contingente de não pouca monta, sobretudo entre as mulheres e na chamada nova classe C - que melhorou de vida e se modernizou no plano material, mas continuou fiel a valores religiosos na esfera dos costumes -, a evangélica Marina ficou com os votos que seriam de Dilma antes que se propagasse na internet a acusação de que, além de ateia, ela era favorável ao aborto. Um retrospecto de declarações ambíguas, devidamente explorado por seus detratores, se mostrou mais forte que as cenas de religiosidade explícita protagonizadas pela candidata na reta final da campanha.

Mas, qualquer que tenha sido a importância do voto religioso para dar a Marina perto de 20 milhões de sufrágios (e outro tanto em porcentagem), ela foi a vencedora política do pleito. Não apenas por ter levado a sucessão a um novo teste, mas também pela proeza que está por trás disso: a implosão do projeto plebiscitário de Lula, que trabalhou noite e dia por uma disputa entre "nós e eles, pão, pão, queijo, queijo". "Nós", o lulismo, "eles", a oposição. Ao decidir participar, "com uma dorzinha no coração", do que o ex-companheiro desejava restringir a uma revanche com Fernando Henrique, Marina fez história.

"Não vamos aceitar o veredicto do plebiscito", prometeu em junho, na convenção do PV. E previu: "Ele vai ser revogado pelo povo." 

Uma dura lição para o PT,  por Aldo Fornazieri

Como o processo eleitoral ainda não terminou, o resultado do primeiro turno permite afirmar que o PT saiu dele com uma derrota relativa: não alcançou seu principal objetivo, que era o de eleger Dilma Rousseff sem a necessidade de um segundo turno. De quebra, a oposição saiu fortalecida nas disputas estaduais, com quatro governadores eleitos pelo PSDB e dois pelo DEM. O PSDB manteve os seus dois principais baluartes: São Paulo e Minas Gerais; e o DEM não foi extirpado da política brasileira. A conquista do Paraná foi contrabalançada pela perda do Rio Grande do Sul.

O novo fracasso do PT nos dois principais colégios eleitorais do País revela duas coisas: em Minas houve um enorme erro de estratégia com o não lançamento de uma candidatura própria. Em São Paulo o PT precisa mudar de rumos e apostar em novas lideranças. Com a vitória de Tarso Genro no primeiro turno, o eixo de poder no PT passa por fora do Sudeste.

O resultado final em 18 Estados, com 4 governadores do PMDB, 4 do PT, 3 do PSB e um do PMN, mostra um quadro de equilíbrio entre governo e oposição, o que é salutar para a democracia, já que impede um hegemonismo desequilibrador de uma sigla. A oposição fugiu do apocalipse que se anunciava, é verdade. Mas terá de se reconstruir, pois PSDB e DEM são partidos fragmentos, sem base social e sem eixos programáticos claros, capazes de lhes conferir identidade e sentido.

Marina Silva foi a grande vencedora do primeiro turno. Ganha força para negociar uma agenda com um dos candidatos - Dilma ou José Serra. Um purismo olímpico de Marina neste momento representaria um não dar consequência à sua expressiva votação.

Serra vai para o segundo turno não por méritos próprios, mas graças ao desempenho de Marina. O que ele ganhou é uma oportunidade de se reabilitar, de reconstruir sua credibilidade, de apresentar uma agenda para o Brasil, pois a sua campanha no primeiro turno foi sofrível, errática e sem foco. O segundo turno, de qualquer forma, recoloca em cena aquilo que se previa no início do processo eleitoral: uma campanha dura e polarizada entre Dilma e Serra. Naquele momento se esperava até mesmo que Serra pudesse chegar à frente de Dilma no primeiro turno.

Dilma fez uma campanha centrada nas realizações do governo, mas também deficitária em termos de agenda futura. O que mais pesou para o seu recuo na reta final, e a ascensão de Marina, foram a tradicional arrogância petista, ancorada numa sede desmedida de poder, e a insistência em não aprender com os erros do passado. Três erros graves da campanha governista determinaram o segundo turno.

O primeiro erro foi o escândalo envolvendo Erenice Guerra. Alegar desconhecimento do tráfico de influência na Casa Civil é absolutamente insustentável, pois o governo dispõe da Abin, da Política Federal e de outros órgãos de controle interno para saber o que se passa no alto escalão governamental e no seu entorno. O que o episódio Erenice demonstra é que o PT e o governo abandonaram os cuidados necessários com o tema da moralidade pública, acreditando que o poder é uma espécie de salvo-conduto para práticas antirrepublicanas. Na verdade, desde que chegou ao poder, o PT foi enfraquecendo sua vértebra republicana, caminhando para a vala comum dos outros partidos nesse quesito. Não é raro ouvir de militantes petistas a tese de que sem essas práticas não se governa. O que a evidência tem demonstrado é que a assimilação dessas teses e dessas práticas representa muito mais risco do que benefício político, além de uma descaracterização em termos de valores republicanos.

O segundo erro, na reta final da campanha, consistiu em morder a isca, pisar na casca de banana jogada pelos adversários. Os petistas - presidente Lula à frente - passaram a atacar a imprensa, abrindo o flanco para que proliferassem acusações de antidemocratismo e para que se publicassem manifestos em defesa da liberdade de expressão, reanimando o medo que é tônica nas campanhas desde 1989, quando Lula chegou perto da vitória. O próprio presidente parece ter-se esquecido de que o que ganha votos são mensagens positivas, simplicidade e um estilo "Lulinha paz e amor".

O terceiro erro foi em torno do polêmico tema do aborto. Inicialmente, documentos do PT o declararam a favor do aborto. Dilma manteve uma posição ambígua sobre o assunto até que, na véspera das eleições, no contexto de perda de votos por causa das dúvidas sobre sua posição, ela se manifestou contra o aborto. Mas já era tarde. Aqui também há uma falta de aprendizado com a História. Temas morais, altamente sensíveis para a maioria das pessoas comuns, merecem todo o cuidado no trato dispensado por candidatos majoritários. Um presidente da República deve ser o símbolo da unidade da Nação. Os temas morais polêmicos devem ficar no âmbito do Legislativo.

Dilma e Serra precisam extrair uma bela lição da campanha de Marina. Não são apenas cimento, ferro, estradas e obras que rendem votos. O "eu fiz" ou "fiz mais" também não resolve tudo. Uma campanha para a Presidência precisa irradiar valores vinculantes, uma perspectiva de civilização. Os dois candidatos mais votados pouco falaram de valores.

Uma eleição presidencial é também uma promessa de futuro, uma visão de destino que a sociedade quer e precisa se dar. O futuro não se define apenas no factível em termos de obras, mas também na regulação social pelo metro dos valores. A política é um dos fatores sociais nos quais os indivíduos querem encontrar uma razão de vida. A política é a atividade que consegue configurar de forma mais abrangente um sentido de pertencimento a uma comunidade de destino. Uma disputa presidencial apartada de valores e de sentido civilizador perde a sua razão principal de ser.

DIRETOR ACADÊMICO DA FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO (FESPSP) 

MELHOR QUE ESTÁ PODE FICAR, por Ilan Goldfajn

O resultado das eleições presidenciais está aí. Haverá segundo turno. E, com ele, a esperança de surgirem os programas para o próximo governo. Houve poucas propostas até agora. No tema econômico, o mote parece ter sido o inverso do Tiririca: "Melhor que está não fica." Mas fica melhor, sim. Apesar dos avanços significativos nas últimas duas décadas, o Brasil continua um país relativamente pobre e mal distribuído. Os países que souberam aproveitar o salto inicial para avançar mais colheram os frutos, os outros estagnaram ou até recuaram. Há questões relevantes para poder melhorar: como aproveitar o contexto internacional e a credibilidade adquirida para dar um novo salto para o desenvolvimento sustentável? Como facilitar a vida de quem trabalha, produz e investe no Brasil? Haverá financiamento para todos os investimentos necessários nos próximos anos? De que forma lidar com os gastos que aumentam, o câmbio que se fortalece e os juros reais que caem devagar?

As oportunidades nunca estiveram tão presentes para o Brasil dar um novo salto. Em primeiro lugar, o Brasil insere-se favoravelmente no contexto global. A necessidade de ajuste nos países desenvolvidos (como a redução dos gastos do consumidor nos EUA) cria demanda para que países emergentes ajudem com crescimento do seu mercado consumidor. O Brasil é, sem dúvida, um desses países. O crescimento e a formalização da economia, somados à eficácia das políticas sociais, têm gerado um novo mercado consumidor no País. O crescimento da classe média no Brasil é substancial. Entre 2003 e 2008, cerca de 32 milhões de pessoas ingressaram nas classes A, B e C. Em 2003, as classes A, B e C, somadas, correspondiam a 45% da população brasileira; em 2008, esse porcentual subiu para 60% e acreditamos que em 2014 chegará a 67%. Esse processo terá implicações profundas sobre o ambiente de negócios no País.

Em segundo lugar, o Brasil fez o seu dever de casa. A conquista da estabilidade macroeconômica - como o controle da inflação - tem gerado dividendos para o desenvolvimento. O risco macroeconômico caiu substancialmente e a confiança no País está em alta, o que se tem manifestado num processo de alongamento de prazos de investimento, queda (lenta) da taxa de juros real e formalização da economia. Como se aproveitar disso e dar o próximo passo?

Há vários desafios à frente. Um deles é financiar adequadamente (ou seja, de forma sustentável macroeconomicamente) o investimento necessário nos próximos anos. Precisamos investir 25% do PIB, mas provavelmente "só" alcançaremos 22% pela falta de financiamento. Além dos investimentos necessários das empresas para satisfazer a demanda crescente dessa nova classe média, há os investimentos em recursos naturais, que o mundo tanto demanda. Em especial, as descobertas no pré-sal vão exigir muito recursos, além de novas tecnologias. Existe também o desafio de continuar a encurtar o hiato habitacional hoje existente com maiores investimentos em residências. Sem falar nos compromissos assumidos com eventos esportivos como a Copa do Mundo e a Olimpíada. Para isso o governo terá de investir em infraestrutura (por exemplo, portos, estradas, aeroportos e logística), encontrar o financiamento adequado para tal e estabelecer as condições para que o setor privado possa investir também.

O problema é que o Brasil não abre mão dos gastos correntes para economizar recursos vitais para investimento. O cidadão gasta, o governo também. A poupança doméstica (privada e pública) encontra-se em níveis muito baixos. Na ausência de um ajuste fiscal considerável, o País acabará recorrendo à poupança externa para conseguir financiar o crescimento dos próximos anos. Isso significará maior déficit em conta corrente, consistente com um câmbio real valorizado pela entrada de capitais. Um ajuste fiscal no presente (e reforma da Previdência no futuro) permitirá um novo salto para mais investimento, sem déficits externos maiores.

Outro gargalo está na educação. O crescimento sustentável demanda avanços nessa área. É preciso dar ênfase ao acúmulo de conhecimento, à formação de indivíduos que sejam capazes de ser produtivos, resolver problemas e liderar. Apesar dos avanços no acesso à educação (todos frequentam o ensino fundamental e 80%, o ensino médio), a qualidade ainda é ruim. Continuamos com mau desempenho nos testes de proficiência internacionais. Quase 80% dos nossos alunos de 15 anos não obtiveram a proficiência mínima em Matemática (comparados com apenas 2% na Coreia do Sul). Em Leitura e Ciências, 64% e 57% não obtiveram a proficiência mínima (comparados com zero e 2% na Coreia do Sul).

Interessante é que apenas gastar mais não resolve. Gasta-se no Brasil em educação o equivalente ao que se gasta na Coreia do Sul (acima de 4% do produto interno bruto), com resultados bem inferiores. Não basta simplesmente realocar recursos para educação, é necessário planejar e colocar os incentivos corretos para que professores e escolas levem os alunos a um desempenho melhor.

Outro aspecto é a ênfase na eficiência na gestão econômica. Há um número grande de pequenas medidas que facilitariam a vida das empresas e dos indivíduos: otimizar os processos, reduzir a burocracia, incentivar o bom atendimento ao cidadão. A reforma tributária seria uma medida maior nessa busca da eficiência.

Na gestão macroeconômica, a eficiência requer uma recomposição dos instrumentos. Temos de permitir que os juros não sejam nossa âncora exclusiva da responsabilidade. Menos expansão fiscal (via gastos e crédito público) permitiria uma convergência mais rápida dos juros a padrões internacionais, o que também aliviaria a pressão de apreciação do câmbio.

Enfim, melhor que está pode ficar. Agora é o momento crucial.

ECONOMISTA-CHEFE DO ITAÚ UNIBANCO 

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Fonte:
O Estado de S. Paulo

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