‘Hotel da sucessão’, por Carlos Brickmann...
‘Hotel da sucessão’, por Carlos Brickmann
Publicado na coluna de Carlos Brickmann
Só quem conhece a história da TV brasileira recorda deste programa de sucesso de 1955, na época da eleição que levou Juscelino Kubitschek ao poder. No hotel se hospedavam os personagens da campanha. Lá circulava não muito discretamente um objeto misterioso que convencia os políticos a mudar de opinião.
Pois agora, a um ano da eleição, 58 anos depois, outro hotel entra em cena. O ex-ministro José Dirceu pediu ao Supremo que o autorize,como presidiário em regime semiaberto, a trabalhar durante o dia na gerência do Hotel St. Peter, em Brasília. José Dirceu, trabalhando em hotel, sem qualquer experiência no ramo?
Depende do ramo. O proprietário do Hotel St. Peter é Paulo Abreu, empresário de comunicações, de tradicional família de políticos (como os ex-deputados Dorival de Abreu e José de Abreu). É dele a Rede Mundial, que engloba uma série de emissoras de rádio em São Paulo, Supertupi AM e FM, Kiss FM, Scalla FM, Apollo FM, Terra AM e FM, Atual, com ótima audiência. Mas seu sonho é maior: ressuscitar a TV Excelsior, que já foi a maior rede do país sob o comando de Mário Wallace Simonsen, e destruída pelo regime militar. Paulo Abreu, ao longo dos anos, obteve os direitos da TV Excelsior; e não encontra resistência no Ministério das Comunicações. Só falta um decreto presidencial, que elimine eventuais pendências da velha Excelsior com o Governo Federal e lhe deixe o caminho livre.
Como dizia José Dirceu, quando ele dava um telefonema “era um telefonema!” Prestar-lhe um favor, tê-lo ao lado todos os dias ─ que mal faz?
Os mais iguais
O artigo 231 do Estatuto do PT determina a expulsão de petistas condenados “por crime infamante ou práticas administrativas ilícitas, com sentença transitada em julgado”. Nenhum dos condenados com trânsito em julgado no processo do Mensalão foi expulso, ou teve o processo de expulsão iniciado.
O decreto 4.207/02 determina a cassação de medalhas oficiais de condenados com trânsito em julgado. José Dirceu tem a Medalha da Ordem do Mérito Militar; José Genoino, a Medalha do Pacificador; Roberto Jefferson, a Medalha do Pacificador e a Ordem do Mérito Militar; Valdemar Costa Neto, a Medalha do Pacificador. A Medalha do Pacificador deve ser cassada por ato do comandante do Exército, general Enzo Peri; cabe ainda a ele notificar o Conselho da Ordem do Mérito Militar da situação dos condenados. Mas até agora ninguém se moveu, muito menos ele: essa história de obedecer às normas é para os menos iguais.
Economizar, jamais
A coluna Diário do Poder, de Cláudio Humberto, faz uma comparação impressionante entre Brasil e Estados Unidos. O Palácio do Planalto, sede do Governo brasileiro, tem 4.600 funcionários; a Casa Branca, sede do Governo americano, tem 460 funcionários. O presidente americano mora e trabalha na Casa Branca. O presidente brasileiro trabalha no Palácio do Planalto, mora no Palácio da Alvorada e dispõe da Granja do Torto; tem também à disposição o Palácio Rio Negro, em Petrópolis.
E a mania de palácios à vontade não é exclusiva dos presidentes, seja qual for seu partido: o governador de São Paulo mora e trabalha no Palácio dos Bandeirantes, tem um palácio no Horto Florestal, em São Paulo, tem outro palácio em Campos do Jordão. Para que? Para nada.
The British way
O primeiro-ministro britânico mora e trabalha numa casa em Downing Street, 10. A casa foi um presente do rei George 2º a seu principal ministro, Robert Walpole, por bons serviços prestados. Walpole aceitou o presente, desde que não fosse algo pessoal: a casa seria utilizada por quem quer que ocupasse o cargo.
Tudo numa boa
As denúncias sobre fraude em São Paulo no pagamento do Imposto sobre Serviços, ISS, são pesadas. As empresas que pagaram propina dizem ter sido chantageadas, mas os denunciantes afirmam que o pessoal da construção civil era o primeiro a saber quem iria chefiar a fiscalização da Prefeitura e que as empresas procuravam os fiscais para combinar o desconto nos impostos e o valor do suborno.
OK, não é caso de condenar antes de julgar; mas não dá para ficar por isso mesmo por anos a fio. Por que não foi solicitada ainda a quebra do sigilo bancário e fiscal das empresas denunciadas? Aquela lei que pune empresas corruptoras, afastando-as de negócios com o poder público, por onde anda?
Crivella na briga
O ministro e senador Marcello Crivella acha que chegou sua hora: está pronto para disputar o Governo do Rio, na sucessão de Sérgio Cabral, enfrentando nomes como o senador Lindbergh Farias, o vice Pezão, os ex-governadores Anthony Garotinho e César Maia. A legenda de Crivella é o PRB, ligado à Igreja Universal. Ele se atribui grande poder político: segundo disse em entrevista a O Dia, foi quem convenceu o atual governador fluminense Sérgio Cabral a deixar a oposição e aliar-se ao Governo petista.
Afirma Crivella que Cabral, disputando o segundo turno no Rio contra a juíza Denise Frossard, inclinava-se a apoiar a candidatura de Geraldo Alckmin à Presidência, contra Lula, mas cedeu a seus argumentos: Crivella só lhe daria apoio se largasse Alckmin e ficasse com Lula.
O poderoso herdeiro de Lula virou xerife de cadeia e só é candidato a gerente de hotel
ATUALIZADO ÀS 11H32
Em novembro de 2003, com o governo Lula prestes a comemorar o primeiro aniversário, José Dirceu achava que o retrato com a faixa presidencial enfeitando o terno escuro era questão de tempo, algo tão inevitável quanto a mudança das estações. Neste novembro de 2013, já fotografado de frente e de perfil, o presidiário José Dirceu veste o uniforme branco que identifica os 9 mil detentos da Papuda.
Há dez anos, o superministro era chefe da Casa Civil, capitão do time no poder, supervisor do PT e sucessor natural do comandante supremo. Preso há dez dias por determinação do Supremo Tribunal Federal, é candidato ao cargo de gerente-administrativo do Hotel St. Peter, um quatro estrelas de Brasília. O salário mensal estipulado pelo contrato é de R$ 20 mil. Enquanto espera a permissão para passar o dia no local do emprego e voltar à gaiola no começo da noite, exerce com muita aplicação as funções de xerife de cadeia.
Um mensalão no meio do caminho transformou o quase setentão que governa a cela S 13 numa caricatura do ainda cinquentão que reinava no quarto andar do Palácio do Planalto. Mas o estilo é o de sempre, constatou no fim de semana uma reportagem do Estadão. ”Acostumado a dar ordens, José Dirceu impõe a disciplina na prisão”, informa um trecho. “Levanta bem cedo, faz ginástica, organiza temas para debate. É ele o mandachuva que passa as tarefas para os companheiros e decreta a hora de fazer exercícios, de ler, de caminhar e jogar conversa fora”.
Não falta serviço para quem administra em tempo integral o espaço de cinco metros quadrados que, sem contar o sentinela voluntário Eduardo Suplicy, abriga outros quatro mensaleiros: José Genoino, Delúbio Soares, Jacinto Lamas (ex-tesoureiro do PL, hoje PR) e Romeu Queiroz (ex-deputado federal pelo do PTB mineiro). Mas Dirceu consegue abrir espaço na agenda quando confrontado com imprevistos e emergências. Foi ele, por exemplo, quem ajudou a manter longe do final infeliz o “princípio de enfarte” de Genoino.
Até que o companheiro enfermo fosse transferido para um hospital, Dirceu impediu que o vizinho de beliche esquecesse a hora do remédio, revogasse a dieta receitada pelo cardiologista ou sucumbisse a surtos depressivos. Aparentemente, o enfermeiro aprendiz não fez feio: Genoino foi entregue a médicos de verdade com saúde suficiente para conversar com jornalistas por mais de três horas.
A ausência temporária do deputado presidiário liberou o xerife para melhorar a aparência da cela. “Aficcionado por limpeza”, conta a autora da reportagem, “ele pegou um balde de água, sabão e vassoura e puxou Delúbio para ajudá-lo na faxina”. O deputado Zeca Dirceu (PT-PR), que aprovou o resultado, não se surpreendeu com a performance do pai. “É um guerreiro”, entusiasmou-se depois de mais uma escala na modesta sala de visitas equipada com uma mesa e cadeiras insuficientes para tantos visitantes.
Dirceu resume a fórmula do sucesso: “O importante é manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”. No momento, entre uma ordem e uma cobrança, ele se concentra nas páginas de O Capital e suas Metamorfoses, do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, outra tentativa de provar que o que Karl Marx escreveu no século 19 é tão atual quanto o Facebook. Essa imersão nas profundezas marxistas combinaria com o papel de “preso político” interpretado pelo mais notório dos políticos presos se o Brasil não estivesse sob o domínio dos órfãos do paraíso soviético.
Lula, que enxerga nos dissidentes encarcerados pelos irmãos Castro gente muito parecida com a que se amontoa nas cadeias de São Paulo, vê no companheiro condenado por corrupção um perseguido por motivos ideológicos. Foi induzido por tais afinidades que, ao saber da captura dos mensaleiros, decidiu consolar o antigo herdeiro com a eliminação por telefone dos mil quilômetros que separam seu escritório em São Paulo do presídio em Brasília. “Estamos juntos”, disse o ex-presidente. Juntos mas não não misturados. O palanque ambulante abre espaço na agenda até para comícios no Chile. Mas ainda não baixou na Papuda.
Nem vai baixar: se é que pensou na ideia de dar as caras por lá, desistiu de vez ao saber que o regulamento em vigor na cela S 13 inclui o tópico especialmente apavorante: a hora da leitura. Por que correr o risco de chegar bem no começo do suplício? Qualquer livro, como se sabe, está para Lula como a luz do sol para um vampiro. Lido em voz alta por Dirceu, com aquele sotaque, um único e escasso parágrafo bastaria para produzir na cabeça do visitante efeitos tão devastadores quanto a mais selvagem sessão de tortura. Melhor esperar que o guerrilheiro de festim vire gerente de hotel e marcar um encontro no restaurante.
‘Retratos do Brasil na prisão dos mensaleiros’, editorial do Globo
Publicado no Globo
O escândalo do mensalão gera desdobramentos extraordinários desde a entrevista do então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) à Folha de S.Paulo, em 2005, na qual ele denunciou o esquema de compra literal de apoio político e parlamentar ao governo Lula.
Beneficiário daquela obra de engenharia financeira da baixa política projetada em altos escalões do primeiro governo petista, Jefferson viria a ser um dos condenados no processo que inicialmente arrolou 40 mensaleiros, um fato inédito na mais que centenária história da República brasileira.
E o ineditismo não parou por aí. Como nunca houve um banco de réus VIPs tão amplo, a história da Justiça nacional não aconselhava qualquer otimismo quanto a condenações. Pois aconteceu o oposto.
Apesar de todas as possibilidades de recursos protelatórios permitidos pela legislação — à disposição de alguns dos melhores e mais bem remunerados advogados do país —, ilustres terminaram condenados à prisão, outro fato pouco visto na vida pública. E neste sentido importa menos se o regime da pena é ou não de cárcere fechado do que o veredicto que pune poderosos, importante por si.
Expedidos, durante o feriadão da semana passada, os primeiros 12 mandados de prisão de mensaleiros condenados por corrupção, o processo do mensalão passou a gerar excentricidades. Como o primeiro escalão petista apanhado neste primeiro arrastão judicial se autodeclarar “prisioneiro político”.
Não passa de reação risível, sob encomenda para militantes sectários, o ex-ministro José Dirceu, o deputado e ex-presidente do PT José Genoino e o tesoureiro petista Delúbio Soares se considerarem “presos políticos” devido à sentença de um Supremo Tribunal Federal composto, em sua maioria, por ministros indicados pelos governos companheiros de Lula e Dilma Rousseff, e num processo que transcorre há seis anos, com o exercício de amplos direitos de defesa.
Neste caso, Marcos Valério também seria um perseguido do regime? Bizarro.
A reação dos petistas, coreografada por gestos de punhos cerrados como revolucionários de gibi, da primeira metade do século XX, denuncia uma faceta de uma certa esquerda brasileira ─ a de viver do passado. Já inaceitáveis privilégios com que os prisioneiros petistas têm sido tratados na Papuda, em Brasília, denunciam outra faceta: a do Brasil arcaico, aristocrático até a medula, do “você sabe com quem está falando?”.
Deste Brasil, Dirceu, Genoino e Delúbio também fazem parte. Eles são “mais iguais” que os prisioneiros comuns — entre eles, cardíacos, com certeza — cujo sistema de visita é espartano, em contraste com o regime de portas constantemente abertas que tem valido para as personalidades petistas condenadas.
O velho Brasil das elites — ironicamente tão enxovalhadas por facções do PT — está expresso em cores fortes nos acontecimentos em torno das primeiras prisões de mensaleiros.
(O Globo)
‘Uma babá de ouro’, de José Casado
Publicado no Globo desta terça-feira
JOSÉ CASADO
A morena de 29 anos, traços indígenas, olhos castanhos e cabelos clareados, encantou o senador. Levou-a para casa, para cuidar dos filhos.
Semanas atrás, descobriu-se que Gabriela Quintana Venialgo recebia um salário mensal equivalente a R$ 8.200: metade saía da folha de pagamentos do Legislativo; outra metade vinha do caixa de Itaipu Binacional, cujo controle é partilhado entre as empresas estatais de energia do Brasil (Eletrobras) e do Paraguai (Andes).
Gabriela agora é uma mulher famosa. Se tornou a “babá de ouro” do senador paraguaio Víctor Bogado, que também inscreveu uma voluptuosa ex-miss na folha salarial do Congresso.
Parecia ser apenas outro escândalo num trecho da América do Sul onde a corrupção ergueu um país de dois andares. O primeiro é reconhecido pela cartografia internacional e identifica o Paraguai com 406 mil quilômetros quadrados de extensão — área equivalente ao Mato Grosso do Sul.
O segundo andar é de papel pintado, plasmado nas escrituras de propriedade guardadas pelo governo. Tem 122 mil quilômetros quadrados. Esses dois Paraguais somam um território de 528 mil quilômetros quadrados — quase o tamanho de Minas Gerais. Na diferença entre o real e o de papel, cabem juntos os estados do Rio, Espírito Santo, Sergipe e mais uma área igual a duas Brasílias.
O Paraguai tem peculiaridades. Na economia, por exemplo, o contrabando é responsável por boa fatia do Produto Interno Bruto: para cada dólar registrado como receita de exportações realizadas ao Brasil, existem outros três dólares obtidos na venda ilegal de mercadorias ao mercado brasileiro, segundo dados oficiais.
Parecia ser apenas mais uma drenagem política do caixa de Itaipu Binacional. A construção dessa usina hidrelétrica, com represa da altura de um edifício de 65 andares, produziu fortunas e núcleos de poder tanto no Brasil quanto no Paraguai.
Elas surgiram entre 1975 e 1982 na poeira de despesas públicas colossais, como a compra de um volume de concreto suficiente para se construir 210 estádios do porte do Maracanã e de quantidade de ferro bastante para montagem de 380 torres Eiffel. Por anos seguidos a rarefeita contabilidade de Itaipu registrou a compra de caminhão com 30 toneladas de cimento a cada quinze minutos, 24 horas por dia.
Há dez dias, no entanto, o Paraguai vive uma convulsão política por causa do senador Bogado e sua “babá de ouro”. O Ministério Público resolveu processá-lo, mas 22 dos 45 senadores impediram a retirada da imunidade parlamentar. Desde então, assiste-se a uma avalanche de protestos contra a corrupção.
Entidades empresariais aderiram. Lojas, restaurantes e empresas médicas publicam anúncios pedindo a renúncia dos 23 que confundem imunidade com impunidade. Em Santa Catarina, hotéis onde políticos paraguaios veraneiam já expõem cartazes: “Os 23 não são bem-vindos.”
O escrache avançou no fim de semana. Restaurantes em Assunção se recusaram a atender as senadoras Blanca Fonseca e Zulma Gómez. Óscar Daher foi expulso de uma pizzaria aos gritos de “fora ladrão”. Outros foram impedidos de entrar em shoppings. Nas igrejas houve homilias e sindicatos começaram a organizar uma greve geral.
Há uma novidade nas duas margens do Rio Paraná: os donos do poder já não podem delinquir com impunidade absoluta.
O livro de Villa é a autópsia de um embuste
Na edição de VEJA que está nas bancas, comentei o livro mais recente de Marco Antonio Villa: Década Perdida ─ Dez Anos de PT no Poder. Segue-se o texto revisto e ampliado:
(Foto: Roberto Stuckert Filho)
É muito milagre para pouco verso, constatam os brasileiros sensatos confrontados com o samba-enredo que canta as façanhas produzidas entre janeiro de 2003 e dezembro de 2013 pela fábrica de fantasias administrada pelo governo do PT. A letra garante que Lula, escalado pela Divina Providência para dar um jeito na herança maldita de FHC, só precisou de oito anos para fazer o que não fora feito em 500 ─ e repassar a Dilma Rousseff uma Pasárgada da grife Oscar Niemeyer. E a sucessora só precisou de meio mandato para passar a presidir uma Noruega com praia, sol de sobra, Carnaval e futebol pentacampeão.
O único problema é que, até agora, nenhum habitante do país real conseguiu enxergar esse prodígio político-administrativo. Nem vai conseguir, avisa a leitura de Década Perdida ─ Dez Anos de PT no Poder (Record; 280 páginas; 45 reais), do historiador Marco Antonio Villa. O Brasil maravilha registrado em cartório nunca existiu fora da imaginação dos pais, parteiros e tutores do embuste mais longevo da era republicana. Para desmontar a tapeação, bastou a Villa exumar verdades reiteradamente assassinadas desde o discurso de posse do produtor, diretor, roteirista e principal personagem da ópera dos farsantes.
“Diante das ameaças à soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do impasse econômico, social e moral do país, a sociedade brasileira escolheu mudar e começou, ela mesma, a promover a mudança necessária”, decolou Luiz Inácio Lula da Silva ao pendurar no peito a faixa entregue por Fernando Henrique Cardoso. “Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu presidente da República.” A chegada do Homem Providencial à terra devastada, sem rumo e órfã de estadistas abriu o cortejo de bazófias, bravatas e invencionices que, para perplexidade dos que enxergam as coisas como as coisas são, parece ainda longe do fim.
Nunca antes neste país tanta gente foi ludibriada por tanto tempo, comprova a didática reconstituição conduzida por Villa. Nunca se mentiu tão descaradamente sem que um único e escasso político oposicionista se animasse a denunciar, sem rodeios nem eufemismos, a nudez obscena do reizinho. Em férias desde o início do século, a oposição parlamentar assistiu passivamente à montagem do Evangelho Segundo Lula, uma procissão de fraudes que enfileira pelo menos um assombro por ano.
Já no primeiro, o salvador da pátria conferiu a todos os viventes aqui nascidos ou naturalizados o direito de comer três vezes por dia. E a fome acabou. No segundo, com a reinvenção do Bolsa Família, estatizou a esmola. E a pobreza acabou. Não pôde fazer muito em 2005 porque teve de concentrar-se na missão de ensinar a milhões de eleitores que o mensalão nunca existiu — e livrar os companheiros gatunos do embarque no camburão que só chegaria em 2013. Indultado liminarmente pela oposição e poupado pela Justiça, o camelô de si mesmo atravessou os anos seguintes tentando esgotar o estoque de proezas fictícias.
Festejou o advento da autossuficiência na produção de petróleo, rebaixou a marolinha o tsunami econômico, proibiu a crise americana de dar as caras por aqui, condenou a seca do Nordeste a morrer afogada nas águas transpostas do Rio São Francisco, criou um sistema de saúde perto da perfeição e inaugurou mais universidades que todos os doutores que o precederam no cargo, fora o resto. E sem contar o que andou fazendo depois de nomear-se conselheiro do mundo.
Dilma teve de conformar-se com o pouco que faltava. Fantasiou de “concessão” a privatização dos aeroportos, por exemplo. Por falta de fregueses, criou o leilão de um lance só para desencalhar o pré-sal. Acrescentou alguns metros à Ferrovia do Sarney. Obrigada a cuidar da inflação em alta e do PIB em baixa, deixou para depois o trem-bala mais lento do mundo. Mas melhorou extraordinariamente a paisagem do país já desprovido de pobres ao anunciar pela TV a completa erradicação da miséria.
Haja vigarice, gritam os fatos e estatísticas que Villa escancara numa narrativa clara, irrefutável e contundente. Lula escapou do naufrágio graças à política econômica de FHC, que não se atreveu a mudar, e à bonança financeira mundial só interrompida no crepúsculo do segundo mandato. Sobrou para Dilma Rousseff: o “espetáculo do desenvolvimento” prometido pela herdeira só não perde em raquitismo para os de Floriano Peixoto e Fernando Collor, os dois mais retumbantes fiascos econômicos do Brasil republicano. Alheio aos problemas políticos e administrativos que comprometem o futuro da nação, o projeto do governo do PT está reduzido a um tópico só: eternizar-se no poder.
“O partido aparelhou o Estado”, adverte Villa. “Não só pelos seus 23 000 cargos de nomeação direta. Transformou as empresas e bancos estatais, e seus poderosos fundos de pensão, em instrumentos para o PT e sua ampla clientela. Estabeleceu uma rede de controle e privilégios nunca vista na nossa história. Em um país invertebrado, o partido desmantelou o que havia de organizado através de cooptação estatal. Foram distribuídos milhões de reais a sindicatos, associações, ONGs, intelectuais, jornalistas chapa-branca, criando assim uma rede de proteção aos desmandos do governo: são os tontons macoutes do lulopetismo, os que estão sempre prontos para a ação.”
O Brasil perdeu outra década. O PT ficou no lucro. E Lula ganhou mais do que todos.
(por Augusto Nunes)
Os reais problemas da humanidade
“Odeio quando não consigo andar e digitar no celular ao mesmo tempo”. “Odeio quando o carregador de celular não alcança minha cama”. Lidas isoladamente, as duas reclamações podem parecer apenas engraçadas e provocar entre os leitores sorrisos de cumplicidade. Ditas por cidadãos haitianos em meio a um cenário de miséria absoluta é, no mínimo, trágico. Na campanha Problemas do primeiro mundo não são problemas, a ONG americana Water is Life, que arrecada doações para levar água potável a populações carentes, convidou moradores da mais pobre das ilhas caribenhas para lerem queixas postadas no Twitter por habitantes de paragens mais abastadas. O resultado é de tirar o fôlego (leia abaixo a tradução das frases).
“Odeio quando o carregador de celular não alcança minha cama”
“Odeio quando os bancos de couro não estão aquecidos”
“Quando vou ao banheiro e esqueço meu celular”
“Quando esqueço as roupas na máquina de lavar e elas começam a ficar com cheiro ruim”
“Odeio morar numa casa muito grande e precisar de dois roteadores de internet WiFi”
“Quando meu chiclete de menta faz minha água parecer muito gelada”
“Quando tenho que fazer um cheque para minha empregada, mas esqueço qual é seu sobrenome”
“Quando não consigo andar e digitar no celular ao mesmo tempo”
“Quando deixo o carregador no andar de baixo”
“Odeio quando meus vizinhos colocam senha no WiFi”
“Odeio quando peço meu lanche sem picles e ainda assim eles colocam picles”
‘Algo está errado’, por J.R. Guzzo
Publicado na edição impressa de VEJA
J. R. GUZZO
Alguma coisa deu terrivelmente errado com o Brasil de hoje. Só pode ser isso: com o dramático início do cumprimento das penas pelos condenados do mensalão, nessa feia penitenciária da Papuda, a corrupção na vida política brasileira deveria estar na defensiva. Se os principais chefes do partido que manda no Brasil há dez anos foram para a cadeia, o lógico seria esperar mais cautela dos bandos que operam nos escalões inferiores; afinal, se a impunidade de sempre falhou até com a turma que está no topo da árvore, poderia falhar de novo com qualquer um. Uma retração geral da roubalheira, nessas circunstâncias, teria de estar acontecendo em todo o território nacional. Mas os fatos mostram exatamente o contrário: justo agora, com Papuda e tudo, está no ar um espetáculo de corrupção maciça, sistemática e rasteira na prefeitura de São Paulo, envolvendo possíveis 500 milhões de reais em prejuízos para o público, duas administrações e fiscais que chegavam a ganhar 70 000 reais por semana desviando dinheiro do ISS municipal. Mas essa turma toda não deveria estar com medo do ministro Joaquim Barbosa? Não teria de parar um pouco, pelo menos durante estes momentos de mais calor no Supremo Tribunal Federal? Sim, sim, mas está acontecendo o contrário ─ rouba-se mais, e não menos. Que diabo estaria havendo aí? É uma disfunção do sistema; parece que o programa não está mais respondendo.
Sem dúvida, vive-se no Brasil de hoje um momento todo especial. De todos os instrumentos conhecidos para fazer concentração de renda, poucos são tão selvagens quanto a corrupção; lideranças que se colocam na vanguarda das “causas populares”, como se diz, deveriam, para merecer algum crédito, ser as primeiras no combate a essa praga. Mas não foi possível notar, quando esse último escândalo estourou, a mínima preocupação do mundo político oficial com os fatos denunciados ─ é como se 500 milhões fossem um mero trocadinho, coisa para o juízo de pequenas causas, talvez, ou algo a ser tratado como um empurra-empurra em escalões inferiores. A reação do maior líder político do país, o ex-presidente Lula, e das cúpulas do PT resumiu-se a uma única questão: como evitar que o ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab, que se estranhou no episódio com o seu sucessor petista, Fernando Haddad, crie problemas para a candidatura à reeleição da presidente Dilma, em 2014. Afinal, trata-se de um aliado — e aliados estão acima de tudo para a “governabilidade” da nação, tal como ela é vista no partido do governo. Foi precisamente por aí, na verdade, que se chegou até aqui: de apoio em apoio, de acordo em acordo, de negócio em negócio, Lula e o PT tornaram-se iguais às forças políticas que mais combateram quando eram oposição, e que sempre denunciaram como as grandes culpadas pelo atraso, pobreza e injustiça do Brasil. Ao fecharem os olhos à corrupção e a outras taras que degeneram a vida pública no país, e ao descartarem como “moralismo” toda e qualquer denúncia contra a imoralidade, criaram os corvos que hoje os perseguem. Nada mais merecido, para quem adotou essa opção, do que ver na cadeia José Dirceu e José Genoino, suas “figuras históricas” e astros do mensalão ─ e em plena liberdade, com sua vida política cada vez melhor, os Sarney e os Collor, os Maluf e os Calheiros, inimigos de ontem e sócios de hoje.
Não era assim que estava programado.
***
Há personagens que nos presenteiam com momentos de grande conforto. O ex-presidente Harry Truman, dos Estados Unidos, até hoje o único ser humano a utilizar armas atômicas em guerra, é um deles. Depois de deixar a Presidência, como lembra um relato que tem circulado no mundo digital, recusou todas as ofertas financeiras que recebeu das grandes empresas americanas para exercer cargos de diretor, ou consultor, ou membro do conselho, ou qualquer atividade paga por elas. “Vocês não querem a mim”, dizia Truman, certo de que ninguém estava interessado em pagar para ouvir suas ideias, conhecimentos ou lições. “Vocês querem é a imagem do presidente. Isso não está à venda.”
O ex-presidente Lula, e antes dele Fernando Henrique, e antes de ambos Bill Clinton, e depois dos três a presidente Dilma Rousseff e o presidente Barack Obama, têm todo o direito às fortunas que já ganharam ou vão ganhar das maiores corporações do mundo com suas palestras. Mas dão direito, também, a que se faça uma pergunta: do ponto de vista da decência comum, qual das duas posturas parece ser a mais bonita?
Valeu, Mr. Truman.
Tags: água potável, ONG, problemas de primeiro mundo, Water is Life
2 comentários
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Maurício Carvalho Pinheiro São Paulo - SP
Caros colunistas !! Temos que pensar que nem tudo é tão ruim assim !! Agora é só ficar de plantão permanente lá no hotel, subornar os empregados e saber das coisas. Como diz um politico desses em voga, "dá um comixão para trair" .
Maurício Carvalho Pinheiro São Paulo - SP
Meus caros escritores !! A vida é tão simples e objetiva
e vocês não percebem. O povo é semi-analfabeto ! 70% desses coitados é obrigado a votar e a maioria nunca foi a uma escola ou não terminou curso algum !! Só quer saber de cachaça, cerveja, cigarro e transar. Os pais somem e deixam a tarefa de criar os produtos dessa "proeza" para a coitada da mãe. Os votos deles é comprado com Bolsa Esmola ou 36 milhões de beneficiados beneficiados a boiar na vida. O resto não interessa !! Então tome pesquisa de Aprovação ou Popularidade comprada, como o voto dos mensaleiros e suas agremiações, que entrevistam 1/2 duzia e dizem que 124 milhões pensam igual. Somam Ótimo (Dilma tem 8% !) com Bom e acham 43% de aprovação ou 872 votos !! Em 143 municipios, dizem entrevistar, num universo de 5.536 que temos !! Não atendem o que a lei eleiotral exige e não arquivam os resultados para exame e verificação se é de verdade. E dizem em cada uma delas que "se a eleição fosse hoje venceria já no 1º turno" o que nunca ocorreu nem com o safadão e ninguém mais. E a Veja acredita, o Estadão e Globo pagam por essas fajutices, o Datafolha diz que não é possível detalhar, e ninguém vai ver a mentirada toda. Em São Paulo, por explo., em 2008 a Martaxa, liderava por essas pesquisas fedorentas com 8 pontos à frente do 2º, o Alkmin, faltando 3 dias para o primeiro turno, e perdeu fragorosamente para 0 3º o kassab nos 2 turnos!!! Até com facilidade !!! Questionei junto ao TRE de SP algumas dessas pesquisas que passou ao Ministério Publico, que após enrolar por 60 dias, respondeu que não era possível apurar. Depois de passadas as eleições, naturalmente. E ninguém veio explicar como se deu a reversão de expectativas. Algum safado veio dizer que foi a rejeição ?????? Nenhum desses últimos pleitos se resolveu no 1º turno !!!! Então as pesquisas são mentirosas no minimo. E são usadas largamente para induzir o votos desses caras que nem deveriam votar pois não sabem o que e como escolher. O que pela Lei eleitoral são crime, assim como fraudar pesquisas também o é e passíveis de multa e até prisão. Quando alguém do Ibope, Sensus, Datafolha, e da CNT e CNI, vão ser presos ??? Segundo a Diretora de Pesquisas do Ibope, uma tal de Passareli, elas se justificam porque são "mais fáceis e mais baratas de se fazer" mesmo sendo falsas e mentirosas. Tem um Chefe da cadeira de Bacharelado em Estatística de uma Universidade lá do NE que se manifestou numa sexta-feira, imediatamente antecedendo o primeiro turno, em horário nobre, pela Voz do Brasil, por volta das 19,30 horas, e no qual foi eleita a Presidenta ou poste 2, detonando essas pesquisas. Pelo jeitão, fui só eu que ouvi o Dr. Cristiano Ferraz, uma vez que nenhum jornalista ou escritor lê o que os outros pares e outras fontes dizem.