Acampados nas colunas dos grandes jornais, os profetas da
imprensa não se rendem. A tribo previu a rendição sem luta de José
Serra, a ruptura entre o governador paulista e Aécio Neves, a deserção
de Tasso Jereissati, a aparição de rachaduras na aliança entre o PSDB, o
DEM e o PPS, a reedição em escala ampliada do espetáculo da
incompetência política apresentado em 2002 e 2006. Se Serra trocasse a
reeleição sem riscos pela aventura presidencial, advertiram todos, o
fracasso começaria a desenhar-se já em março, quando se daria o que se
batizou de “cruzamento das curvas”.
O fenômeno inevitável foi anunciado no fim de fevereiro. Excitados
com o crescimento de Dilma Rousseff nas pesquisas eleitorais, os
sacerdotes do jornalismo profético decidiram que, no mês seguinte, a
curva ascendente da candidata cruzaria com a linha traçada pelos índices
decrescentes de Serra. Anabolizada pela popularidade do presidente, a
sucessora que Lula inventou apareceria empatada com o adversário ─ ou já
na dianteira. Em abril, poderia encomendar o terninho para o dia da
posse.
Erraram todos. Como tem ocorrido desde a eleição do primeiro chefe de
caverna, o líder não viu motivos para capitular diante do segundo
colocado. No que deveria ser o mais cruel dos meses, Serra lançou
oficialmente a candidatura, uniu as correntes de oposição, cresceu nas
pesquisas e consolidou-se na liderança com 40% das intenções de voto.
São quase 10 pontos percentuais à frente de Dilma. Quase 12 milhões de
votos sobre a concorrente estacionada em torno dos 30%, a taxa histórica
do PT. Mas profetas são duros na queda. Sempre enxergam o que ninguém
mais vê.
Em vez de pedirem perdão aos leitores, sentarem no meio fio e
chorarem lágrimas de esguicho, adiaram para abril o cruzamento das
curvas. Serra fora beneficiado pelo impacto positivo da festa em
Brasília, explicaram. Logo seria identificado como o anti-Lula e
começaria a percorrer a trilha do penhasco. Em contrapartida, a
adversária se veria liberada da trabalheira no Planalto e poderia
concentrar-se em tempo integral na temporada de caça ao voto. Erraram
todos de novo. Serra evitou confrontos com quem não é candidato, não
cometeu nenhum equívoco. Dilma colecionou tropeços, gafes, declarações
desastrosas, platitudes e reticências perplexas.
Nada demais, acabam de decidir os videntes da imprensa. O que houve
até agora não valeu. A campanha só vai começar depois da Copa do Mundo.
Nos próximos dois meses, Lula poderá descansar para a arrasadora entrada
em cena. E Dilma terá tempo para aperfeiçoar a oratória, assimilar
truques que uma neófita desconhece e, sobretudo, ficar mais conhecida.
Como se Lula não estivesse no palanque e em campanha ostensiva desde
meados de 2007, com Dilma todo o tempo a tiracolo. Como se o eleitorado
ainda não soubesse quem é a candidata do presidente. Como se ela só
precisasse de treinamento. Como se ninguém tivesse percebido que, quanto
mais conhecida fica, mais pontos Dilma Rousseff perde.
Como se não fosse possível, enfim, diagnosticar a cada discurseira um
caso incurável de indigência intelectual. “Ela precisa concluir o
raciocínio”, descobriu Lula na semana passada. O problema é bem mais
grave. Só pode ser concluído o que começa, e Dilma é incapaz de
articular um raciocínio lógico. É aceitável que Lula não saiba disso:
ele não conseguiria enxergar diferenças entre um Franklin Roosevelt e um
Evo Morales. É compreensível que o rebanho engula Dilma sem engasgos:
os devotos do Mestre engoliram até José Sarney fantasiado de homem
incomum. O espantoso é o engajamento na farsa dos colunistas videntes.
Se dirigissem um telejornal, eles reprovariam Dilma Rousseff no
primeiro minuto do teste de vídeo. Se comandassem uma redação, a
candidata à presidência perderia na primeira linha do texto a disputa
pela vaga de estagiária. Como entender o comportamento abúlico,
cúmplice, pusilânime de profissionais que escrevem bem e se expressam
com clareza? Por que não reagem com estranheza ao palavrório
indecifrável? Talvez acreditem que a maioria dos eleitores brasileiros é
formada por imbecis juramentados, e que Lula é capaz de eleger até um
poste.
Eleger um poste é mais fácil que eleger uma Dilma Rousseff. Postes
não falam. A candidata fala coisas incompreensíveis. O silêncio é menos
absurdo e menos perturbador do que o som da insensatez.
Celso Arnaldo captura Dilma: ‘Pois é, eu nem dado tenhoO implacável Celso Arnaldo acaba de capturar uma
sensacional revelação de Dilma Rousseff em Uberaba. Espantem-se:
Trecho da coletiva de Dilma hoje na Expo Zebu, falando sobre o
desafio de construir um palanque único em Minas:
“A única coisa que hoje você vai ter é um resultado, que ainda não
ocorreu que eu saiba, não é isso?” (voltando-se para Fernando Pimentel,
que digita algo no celular e continua digitando enquanto responde):
“Não, só à tarde”.
Quando Dilma ia recomeçar sua resposta, Pimentel, sem parar de
digitar, completa a informação:
“Cinco horas”.
Visivelmente contrariada com o complemento, ela suspira:
“Pois é, eu nem dado tenho.”
Depois nos acusam de interpretações maldosas.
Optei por um domingo sem Dilma, dedicado à leitura inteligível e ao
álbum de figurinhas da Copa que minha filha está colecionando,
febrilmente.
Mas, há alguns minutos, por força de hábito, dei uma passada pelo
twitter dela. E logo percebi que não poderia terminar o domingo sem
Dilma:
“Daqui a pouco, às 20h, no www.dilmanaweb.com.br, estará no ar a
gravação que converso sobre Cultura. Até Mais!”
A “gravação que converso”? Sim, é Dilma, de próprio punho. Mas o mais
excitante do twitt é a chamada: tem Dilma falando sobre cultura no site
oficial, talvez para tentar desfazer a péssima impressão sobre o livro
que fingiu ter lido e sobre sua já notória incultura geral.
A conversa tem uns 15 minutos e é dividida em duas partes. Dilma está
sentada entre a repórter oficial de sua campanha, Carla Bisol, e o
moço-velho digital Marcelo Branco. Ao som de uma moda de viola meio
bachiana (um mix de som bem Brasil com cultura clássica), ela e Marcelo
fingem ver alguma coisa no notebook (sintonia com os novos tempos).
Mas o notebook e a música de fundo saem de cena antes da primeira
pergunta: como garantir mais recursos para a cultura brasileira? Dilma
vai responder, mas não sem antes interagir mais afetivamente com seus
eventuais espectadores, como eu. A saudação revela-se indispensável:
“Primeiro eu queria cumprimentá os internautas. Oi, internautas”
Dito isto, dá-lhe teleprompter ─ tudo escritinho, o discursinho
oficial pontuado a cada 10 segundos com o onipresente “isto é muito
importante” de Dilma. Em dado momento, a câmara enquadra Dilma e
Marcelo: ela lendo o texto num ponto futuro; ele, com uma camiseta que
eu não usaria como pano de chão da cozinha, visivelmente tentando
acompanhar a leitura tatibitate dela no monitor.
Não vou dissecar o teor da “entrevista”, cheia de números duvidosos
─ como a afirmação estranhíssima de Dilma de que o governo Lula
instalou mais de mil cinemas em cidades com menos de 20 mil habitantes.
Mas chamo a atenção dos amigos para o trecho ─ aí de improviso ─ em
que a cinéfila Dilma Rousseff, que rivaliza com a leitora voraz, fala
sobre sua paixão pelo movimento cineclubista em Belo Horizonte,
particularmente pelo CEC, Centro de Estudos Cinematográficos. E pela
primeira vez revela a verdadeira razão de ter fugido de Minas:
“A gente assistia e discutia. Naquela época até era considerado
um pouco avançado e muito subversivo discutir filme. Cê imagina a
discussão que saía quando você discutia Vidas Secas, porque em Vidas
Secas, né, tá retratado todo o problema da miséria, da pobreza, da saída
das pessoas do Nordeste pro Brasil”.
Podemos imaginar Dilma e seus colegas de cineclube, de desodorante
vencido e calcanhar sujo, discutindo aos tapas a verdadeira problemática
de Vidas Secas: o Nordeste ali retratado era mesmo o do Brasil ou
apenas uma alegoria da miséria sul-americana ou africana, já que,
segundo Dilma, os retirantes tentavam sair do Nordeste para o Brasil?
A discussão foi tão acalorada que os vizinhos do CEC chamaram a
polícia. Foi quando Dilma decidiu que Belo Horizonte já não era mais uma
cidade segura para ir ao cinema ─ pelo menos para quem tem uma
interpretação tão subversivamente primária sobre um clássico absoluto do
cinema brasileiro.
Desconfio que Dilma Rousseff assistiu a Vidas Secas e a qualquer
outro filme do mesmo modo que leu As Brasas.