Editorial do ESTADÃO: "A falta que os fatos fazem"...

Publicado em 09/11/2014 06:56 e atualizado em 10/11/2014 14:25
publicado na edição deste domingo em O Estado de S. Paulo

Foram apenas palavras - ainda que as mais surpreendentes que a presidente Dilma Rousseff terá pronunciado em muito tempo. Na quinta-feira, dois dias depois de se reunir com o mentor Luiz Inácio Lula da Silva, o que decerto contribuiu em não pouca medida para algumas de suas inesperadas afirmativas, Dilma deu uma entrevista de duas horas aos quatro principais jornais brasileiros, cumprindo um compromisso assumido em seguida à reeleição. Pela primeira vez, ela abriu uma fresta para se admitir a possibilidade de que não será, nos próximos quatro anos, cópia fiel do que tem sido - uma combinação tóxica de soberba, dogmatismo e incompetência. Não é nada, não é nada, a governante que se comportava como a proverbial rainha da cocada preta do léxico popular pelo menos agora usa a expressão para dizer como não devem agir os ganhadores de uma eleição. Com algum otimismo, pode soar como indício de autocrítica.

Em matérias substanciais reconheceu - ainda que no limbo das generalidades - que terá de fazer "o dever de casa" para enfrentar a inflação. Salvo melhor juízo, não se recorda de Dilma ter recorrido alguma vez a esse termo, de emprego corrente no jargão ortodoxo, segundo o qual a arrumação das contas públicas é condição necessária, embora não suficiente, para o crescimento sustentado da economia. Isso dito, literalmente, a reeleita deu um pequeno passo em direção ao mundo real, ao admitir, além do aperto imperativo do controle da inflação, que existem restrições fiscais para fazer "a política anticíclica que poderia ser necessária agora" - traduzido do jargão, significa gastar mais quando as coisas vão mal, o que é o caso de um país que deverá fechar o ano com um PIB crescendo menos de 1%. E assinalou que combaterá a carestia com a arma fiscal, não com a monetária - segurando e racionalizando gastos, de preferência a aumentar os juros.

Derramando um saleiro nas feridas petistas que ela abriu de caso pensado com o aparente aggiornamento de suas ideias, respondeu no melhor estilo Dilma a uma pergunta sobre a hidrófoba resolução aprovada três dias antes pela Executiva Nacional do PT - que declarava guerra de extermínio à oposição e à liberdade de imprensa, e ainda deixava escancarada a pretensão de tomar de assalto o Banco Central. Ela até que poderia ter se limitado a retrucar, da forma convencional como fez, que não representa o PT, mas a Presidência, e que não é presidente da agremiação, mas "dos brasileiros". Houve situações em que o seu próprio patrono Lula disse algo assemelhado. Mas a afilhada escolheu ir além. "A opinião do PT é a opinião do partido, não me influencia", fulminou. De notar que ela nem sequer amenizou a estocada, dizendo respeitar os pontos de vista da sigla pela qual chegou ao Planalto.

Quem comprar as palavras de Dilma pelo seu valor de face poderá, ou não, fazer um bom negócio no mercado de especulações sobre o que será o seu novo período de governo. O desembolso será de pouca monta: o farto retrospecto da presidente respalda, ainda, o ceticismo em relação ao que virá depois de 1.º de janeiro. Mas a leitura da íntegra de sua entrevista, claramente concebida como uma minuta do discurso de posse, deixa no ar a sensação - não mais do que uma sensação - de que a entrevistada está "na dela", de maneira diferente daquela a que acostumou os brasileiros a vê-la. Quando ela explica, por exemplo, que o diálogo que prega não é algo "metafísico", mas a busca de pontos em comum "que podemos levar juntos" em áreas específicas de governo, como a educação, quem sabe não seja mais do mesmo. O óbvio problema é a ausência de fatos que corroborem essa generosa avaliação.

Pior é a deliberada demora da presidente em apresentá-los, supondo que existam. Enquanto o País, com justos motivos, espera para ontem o nome do sucessor do submisso Guido Mantega no Ministério da Fazenda, Dilma informa que só anunciará o escolhido depois de regressar da reunião do G-20, a começar no próximo sábado, em Brisbane, na Austrália. E não será de imediato, como avisou com perversa ênfase, "mas nas semanas seguintes - com vários esses". Ela simplesmente não atina com a gravidade do momento econômico.

Só o governo não via a crise do setor elétrico

Empresários e analistas especializados já vinham alertando que a crise de graves proporções do setor elétrico poderia levar a um racionamento de energia a curto prazo. A crise foi provocada pelo progressivo esgotamento dos estoques dos reservatórios das grandes usinas das Regiões Sudeste e Centro-Oeste em razão da estiagem que se prolonga desde o fim de 2012. Mesmo com todas as termoelétricas em operação, a oferta de eletricidade chegou a um ponto crítico, o que torna inevitáveis medidas de racionalização do consumo, de modo a evitar "apaguinhos" localizados. Não faltaram sugestões de revisão do modelo para o setor, para a adoção de esquema emergencial e atrair novos investimentos, mas o governo continuou agindo como se tudo estivesse "sob controle" nessa área.

Essa percepção começou a mudar na esfera oficial na última quarta-feira (5/11) com a informação de que o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) elevou de 4,7% para 5% o risco de um déficit de energia nas duas regiões, sinalizando a necessidade de um eventual racionamento, já que foi atingido o limite tolerado pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Para isso concorreu também o fato de que só foram acrescentados ao sistema elétrico nacional 7.641 MW em 2014, 25% aquém da projeção feita pela Aneel em janeiro (10.126 MW).

Com a economia estagnada, inflação elevada e contas públicas em desordem, não poderia haver pior notícia, tendo em vista as perspectivas para 2015. Em outubro, as chuvas ficaram 60% abaixo da média histórica nas Regiões Sudeste e Centro-Oeste. Ainda que os índices pluviométricos devam ser mais favoráveis de agora em diante, só depois de muitos meses, talvez anos, os reservatórios das hidrelétricas voltarão ao normal. Isso faz prever cortes frequentes de eletricidade em diversos pontos nas regiões que concentram o maior contingente populacional e a maior parte da produção.

O intenso acionamento do parque termoelétrico, a pesados custos, evitou um racionamento, termo que é anátema para o governo, mas o CMSE admite que, "mesmo com o sistema em equilíbrio estrutural, ações conjunturais específicas" podem ser necessárias. A nota, contudo, não menciona que ações poderiam ser adotadas - elas são de competência do Operador Nacional do Sistema (ONS).

Uma das hipóteses é um "racionamento branco" ou cortes seletivos de carga, que poderiam ser viáveis mediante acordos com grandes consumidores e distribuidoras para reduzir o uso de energia. Essa alternativa, no entender dos técnicos, seria melhor que cortes não planejados do fornecimento ou "apaguinhos". Seja como for, os empresários se queixam de que nenhuma autoridade responsável pela área tomou qualquer iniciativa para uma gestão racional da demanda.

Mas, independentemente dos efeitos sobre a produção da falta de energia, não há dúvida de que haverá novas rodadas de aumentos de tarifas, além dos reajustes já autorizados, criando novos ônus para os consumidores e contribuintes, afetando a inflação. Isso porque as distribuidoras, que incorreram em prejuízos com o acionamento de termoelétricas e compra de energia no mercado livre, terão de amortizar os empréstimos que tomaram de instituições financeiras, especialmente bancos públicos.

Calcula-se que o governo tenha negociado, até agosto, R$ 17,8 bilhões em empréstimos às distribuidoras para compensá-las pelos prejuízos incorridos com a energia que foram obrigadas a comprar para atender ao consumo. A isso se deve somar um empréstimo mais recente de R$ 1,9 bilhão feito pela Caixa Econômica Federal à Celg, a estatal goiana de eletricidade.

Além disso, houve repasses diretos do Tesouro Nacional, pagamento de indenizações, etc. Segundo cálculos de especialistas, o governo federal gastou nada menos que R$ 105 bilhões desde a edição da MP 579 - transformada na Lei 12.783, de janeiro de 2013 -, cujo objetivo era reduzir o preço da energia, mas desorganizou o setor e elevou o preço da energia.

A hora é de temperança, por

GAUDÊNCIO TORQUATO - O ESTADO DE S.PAULO

Não há mais como esconder o sol com a peneira. A presidente reeleita, os novos governantes estaduais e a representação no Congresso Nacional terão de enfrentar nos próximos tempos o sol mais abrasador de verões que o País viveu nas últimas décadas. 

Há razões de sobra para demonstrar a hipótese, mas fixemos a atenção em apenas numa: a sociedade organizada está adiante do universo político. O que quer dizer que a comunidade nacional, abrigada em núcleos de interesse e em fortalezas de demandas, está um passo à frente dos mandatários; e estes, infelizmente, não têm conseguido acompanhar as massas apressadas e estabelecer com elas pontes de acesso e diálogo. É visível a distância entre as esferas política e social, principalmente quando se constata que a profusão de demandas reprimidas não consegue entrar nos ouvidos de representantes inertes e insensíveis.  

As manifestações que despertaram a sociedade em meados do ano passado e se estenderam por bom tempo refluíram, dando passagem à onda eleitoral, mas não significa que tenham sido enterradas nas urnas. Ao contrário, a qualquer momento podem dar sinal de vida, se não de maneira estrondosa e impactante, ao menos de modo pontual, atacando aqui e ali as carências nas áreas de mobilidade urbana, moradia, degradação ambiental, falta d'água, assentamentos, demarcação de terras, etc. A propósito, a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz acaba de identificar 490 pontos de tensão no País, nas áreas urbanas e rurais de todos os Estados. Essas bombas-relógio deverão ser desarmadas pelos chefes de Poder que governarão o País nos próximos quatro anos, sob pena de vermos vulcões jorrando lava aqui e ali.  

As massas aguardam apenas o momento adequado para disparar sua munição. Ou, pelo alfabeto de Elias Canetti no clássico Massa e Poder, para jogar sua descarga, fenômeno em que ele descreve os componentes das turbas como pessoas iguais, unidas e em uníssono usando a força para obter, de quem detém as rédeas do poder, soluções para os problemas. Quando as demandas chegam ao pico, em decorrência de carências que se tornam agudas - como a escassez de água, o disparo da inflação, o aumento do preço da cesta básica, o esgotamento dos meios de transporte urbano -, as massas tendem a expandir sua densidade e procurar um direcionamento. Se suas metas não forem atendidas, não se extinguem, podem se recolher momentaneamente para, mais adiante, voltarem com maior ímpeto ao palco das pressões. Pelo visto, o ânimo das massas passa ao largo da sensibilidade dos governantes - não se viram até agora obras de vulto ou investimentos de porte para desobstruir os gargalos que têm originado as manifestações de rua nas grandes cidades e nas áreas rurais; e também não veremos um 2015 pacificado. 

As camadas tectônicas da política ainda não se acomodaram no território dividido pelo voto. E é pouco provável que se ajustem no curto prazo, até porque os exércitos dos dois lados, alinhados durante a sangrenta batalha eleitoral, continuam a disparar seus canhões pelas redes sociais, atirando a torto e a direito, usando munição pesada dos anos de chumbo, no caso, apelos radicais pela volta dos militares, ou exageros como palavras de ordem pelo impeachment da mandatária reeleita.    

O debate faz bem à democracia, mas o discurso político, parta de onde partir, mesmo ancorado na animosidade, há de se regrar pelo império da lei e da ordem. Essa é a direção que se enxerga da fala do candidato tucano derrotado, indício de que a oposição tende a desempenhar seu papel sem extrapolar o limite do bom senso. Da candidata reeleita já se ouviu a peroração com foco no diálogo. Resta esforçar-se para que a militância petista, vestindo a roupa de milícia disposta a usar armas de grosso calibre, se convença de que o acirramento de ânimos não é a melhor estratégia.  

Ao Congresso Nacional cabe uma releitura do País que saiu das urnas, com ênfase ao clamor de grupos e regiões, sem procurar protelar a agenda das reformas, particularmente a que lhe diz mais respeito, a reforma política. Pouco adianta olhar para o retrovisor e perder tempo com a querela verbal do pleito. Os partidos urge chegarem a um mínimo de consenso em torno de pontos centrais para a mudança dos padrões da política. Não é possível que os atores não percebam que a sociedade anda a passos geométricos enquanto a esfera representativa arrasta os pés em compasso aritmético. Ou será que não enxergam a possibilidade de um ciclo legislativo tumultuado, com os corredores e salões das Casas congressuais ocupados pelos movimentos organizados? O País não suporta conviver com a postergação de medidas de correção de rumos. 

Senhores políticos de todos os partidos, afastem tal risco. Senhores do PT, tenham cuidado com a ideia de construir um "Brasil democrático-popular", eis que a argamassa a ser usada nesse empreendimento - revolução cultural, luta de classes, revisão da Lei da Anistia, reforma e desmilitarização das Polícias Militares, entre outras medidas avocadas na nota da Comissão Executiva do PT, semana passada - pode fazer desabar a construção. A convocação para a militância acorrer às ruas é saudável quando a causa for a defesa do Estado de Direito. Nossa Constituição estabelece os meios para a democracia direta - plebiscito, referendo e projetos de lei de iniciativa popular. A criação de um amontoado de instâncias populares com essa finalidade poderá descambar no caos. E um controle social da mídia (seja lá o que for isso) tem jeitinho de disfarce para censura. Ou nossa democracia representativa está exaurida? 

Muita calma com o andor. Lembrem-se da observação de Thomas Hobbes, ante a moldura de uma sociedade que se defronta com horizontes embaçados pela fumaça de incêndios prolongados: "Nesse estágio em que nada mais se vê e se apresenta, o trunfo é paus".  

Longe de nós mudança na base do "pé na porta".

 

Trapalhada bolivariana

O ESTADO DE S.PAULO

08 Novembro 2014 | 02h 03

Quem tem amigos do peito como a Venezuela não precisa de inimigos. Em circunstâncias nebulosas, sem o conhecimento de Brasília, o governo de Caracas firmou com o MST, na cidade paulista de Guararema, convênios pelos quais se compromete a ensinar o povo brasileiro a "seguir avançando na construção de uma sociedade socialista". Muitos dias depois, na última quarta-feira, o governo brasileiro finalmente protestou junto aos muy amigos. Não necessariamente pelo conteúdo dos tais convênios, mas porque o ex-chanceler e, desde setembro, ministro do Poder Popular para as Comunas e os Movimentos Sociais, Elías Jaua, veio ao Brasil para assiná-los sem informar o Itamaraty. E ainda andou se metendo em confusão policial. Uma típica trapalhada bolivariana.

É de imaginar que os petistas tenham ficado aborrecidos com a falta de consideração dos venezuelanos, que, se tivessem sido menos egoístas e mais solidários, teriam possibilitado a realização de um magnífico evento popular em Guararema, talvez até com a presença de Lula com o boné do MST e falando mal da elite. 

Mas, diante de uma desfeita que não se pode ignorar nem quando se trata de amigos fraternos, o chanceler brasileiro, Luiz Alberto Figueiredo, depois de ouvir a presidente Dilma Rousseff, convocou o encarregado de negócios da Venezuela no Brasil, Reinaldo Segovia (o embaixador está viajando), para comunicar a "estranheza" do governo brasileiro com o comportamento de Jaua, reclamar que o lamentável episódio pode significar uma "interferência nos assuntos internos do País" e cobrar explicações do governo de Caracas. Para Figueiredo, "o fato não se coaduna com o excelente nível das relações entre os dois países".

Os convênios foram assinados no fim do mês passado, numa escola do MST onde são ministrados cursos de formação política para militantes de movimentos sociais. Segundo a organização, os tais convênios com os venezuelanos objetivam apenas "a troca de experiências na área da agroecologia". O governo venezuelano, porém, conta uma história diferente.

No dia 28, antes mesmo do regresso de Jaua a Caracas, o governo bolivariano anunciou aquilo que nem o Palácio do Planalto sabia: "No marco da visita ao Brasil do vice-presidente de Desenvolvimento do Socialismo Territorial, Elías Jaua, foram assinados (...) vários acordos nas áreas de formação e desenvolvimento da produtividade comunal entre o Governo Bolivariano" e o MST. E a nota acrescentava que, segundo Jaua, os convênios têm como objetivo incrementar o intercâmbio de experiências para "fortalecer o que é fundamental em uma revolução socialista, que é a formação, a consciência e a organização do povo para defender suas conquistas e seguir avançando na construção de uma sociedade socialista".

Não bastasse a desfeita ao Itamaraty, a estada de Jaua no Brasil envolveu um constrangedor episódio policial. O ministro viajou acompanhado da mulher, que foi submetida a uma cirurgia de emergência em São Paulo. Talvez com a agenda tomada por assuntos mais importantes, Jaua chamou, para fazerem companhia à paciente, a sogra, os filhos e a babá destes. Ao desembarcar em Guarulhos, a babá foi presa em flagrante pela PF e permaneceu detida por quatro dias pelo porte de uma arma que, depois ficou esclarecido, estava numa maleta com documentos que Jaua encomendara à funcionária.

Apurou-se em Brasília que o Itamaraty ficou sabendo da presença de Jaua no Brasil pela PF. E ninguém foi capaz de explicar o que estava acontecendo, até porque o governo brasileiro faz questão de manter "um excelente nível de relações entre os dois países", mas, de repente, viu-se surpreendido por um episódio que contraria os protocolos diplomáticos.

O fato de o Itamaraty ter demorado pelo menos uma semana para se manifestar sobre uma inadmissível interferência nos assuntos internos do País sugere que o governo petista estendeu até o limite a possibilidade de botar panos quentes na situação. Era só o que faltava para quem assistiu passivamente ao calote que o finado Hugo Chávez deu no contrato de parceria na construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Gente fina.

As lições em atraso da presidente

ROLF KUNTZ - O ESTADO DE S.PAULO

 

Fazer mais do mesmo, como se estivesse completando quatro anos de sucesso, foi a grande promessa da presidente Dilma Rousseff na campanha eleitoral. Mas nesta semana ela se declarou disposta a cuidar do "dever de casa" para conter a inflação e ajeitar as contas públicas. Não contou como vai fechar os buracos do Orçamento nem como planeja atacar os focos inflacionários. Também se dispensou de explicar por que deixou de fazer a lição até agora.

Nenhum dos grandes problemas da economia brasileira surgiu em 2014. Nos 12 meses até outubro os preços ao consumidor subiram 6,59%. Com algum vento a favor, a taxa anual poderá ser um pouco menor, mas ainda estará perto de 6%, onde tem estado, invariavelmente, desde 2010. Neste ano, o superávit primário do setor público sumiu, no período de janeiro a setembro. Foi destruído pelo efeito combinado da estagnação econômica, de renúncias fiscais mal planejadas e de um aumento eleitoreiro de gastos. A gestão orçamentária pode ter sido pior que nos três anos anteriores, mas nunca foi boa nesse período. Quanto ao baixo crescimento, foi uma das marcas mais notáveis dos últimos quatro anos. O dever de casa foi sempre adiado.

O governo sempre tentou justificar a inflação elevada e o desarranjo orçamentário como se contribuíssem para a criação de empregos ou, no mínimo, para evitar demissões. Essas alegações podem ter convencido algumas pessoas, especialmente por causa da crise e do desemprego muito alto em várias economias desenvolvidas. Além disso, as comparações quase sempre favoreceram o Brasil. Isso se explica, em parte, pelo uso de um indicador incompleto, produzido mensalmente pelo IBGE em seis áreas metropolitanas. Dados muito mais amplos, produzidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, nova versão da Pnad, compõem um quadro muito menos favorável.

O levantamento tradicional do IBGE, nas seis áreas metropolitanas, mostrou neste ano taxas de desocupação variando entre 4,8% e 5%. O número de setembro foi 4,9%. Num universo muito maior, a Pnad Contínua apontou 7,1% de desemprego no primeiro trimestre e 6,8% no segundo. Este dado foi divulgado nesta semana. Mostrou uma melhora, sem dúvida, mas comprometeu, mais uma vez, as bravatas oficiais sobre a desocupação no Brasil e nos países avançados.

O desemprego brasileiro no segundo trimestre, 6,8%, foi maior que o registrado no mesmo período em 16 dos 34 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A lista inclui, entre outros, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Áustria, México, Holanda, Chile e Nova Zelândia. Inclui também a maior economia do mundo, a americana, e a maior da Europa, a alemã, além do Reino Unido. 

Entre abril e junho a desocupação na Alemanha ficou em 5,1% da força de trabalho. Nos Estados Unidos variou de 6,3% para 6,1%. Nos meses seguintes, o setor privado continuou criando postos de trabalho na economia americana. A primeira estimativa de outubro, publicada nesta sexta-feira, indicou uma taxa de 5,8%, menor até que a da pesquisa mensal conduzida pelo IBGE nas seis tradicionais áreas metropolitanas.

Vários desses países, mesmo entre os mais atingidos pela crise iniciada em 2008, crescem mais que o Brasil e exibem taxas de inflação muito menores.

Pelas novas estimativas da OCDE, publicadas nesta semana, a economia dos Estados Unidos deve crescer 2,2% neste ano, 3,1% no próximo e 3% em 2016. A da Alemanha, 1,3%, 1,1% e 1,8%. A da Coreia, 23,5%, 3,8% e 4,1%. A do México, 2,6%, 3,9% e 4,2%. A do Reino Unido, 3%, 2,7% e 2,5%. A do Brasil, 0,3%, 1,5% e 2%. Mesmo a da zona do euro, ainda afetada pela recuperação lenta e insegura da França e da Itália, deve exibir um resultado médio melhor que o do Brasil neste ano e pouco inferior nos dois seguintes: 0,8%, 1,1% e 1,7%. 

Fora das bravatas oficiais, o Brasil perde, portanto, nas comparações com várias das maiores economias e com boa parte das industrializadas e emergentes (nem é preciso citar a China, com expansão estimada em 7,3%, 7,1% e 6,9% nos três anos). O Brasil exibe crescimento menor, inflação muito maior e desemprego mais alto, quando confrontado com esses países.

Segundo o ministro da Fazenda, Guido Mantega, seu sucessor terá o desafio de substituir uma política anticíclica por uma de expansão. Esse palavrório explica boa parte do desastre brasileiro. A insistência numa política anticíclica, nos últimos anos, foi um enorme equívoco, porque os principais problemas do País estavam longe de ser cíclicos. O investimento era baixo antes da crise de 2008, continuou baixo e até encolheu no último ano.

A estagnação industrial é consequência de velhos desacertos, agravados nos últimos anos, como tributação errada, infraestrutura deficiente, baixo índice de expansão e até de renovação da capacidade produtiva, escassez de mão de obra qualificada e até qualificável, e assim por diante. Não há nada de cíclico nesse quadro. Houve simplesmente a interrupção de mudanças importantes iniciadas nos anos 1990, como a abertura econômica, a integração internacional, a disciplina orçamentária, a melhora da gestão pública e a modernização produtiva. Em vez de avançar, o governo desperdiçou centenas de bilhões com má administração de recursos públicos, envolveu o Tesouro e o BNDES numa perigosa relação promíscua, favoreceu o capitalismo de laços, com políticas seletivas de apoio, e perdeu todo sentido de estratégia e de ação de longo prazo. Enquanto isso, outros emergentes continuaram crescendo e seus governos pelo menos tentaram políticas de modernização.

Abandonada a agenda de reformas, prevaleceram o populismo, o namoro constante com o autoritarismo, a apropriação partidária do Estado e a incompetência. Nenhum dever de casa será bem feito se essa herança for mantida.

*Rolf Kuntz é jornalista

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Fonte:
O Estado de S. Paulo

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