Fascistas à solta, EDITORIAL DA FOLHA desta sexta-feira

Publicado em 02/09/2016 04:09

Toda democracia digna desse nome assegura a mais ampla liberdade de manifestação, desde que pacífica. Atos de violência são reprimidos —e seus autores detidos e processados pelas autoridades.

Essa distinção essencial entre o legítimo e o intolerável em protestos de rua vem-se perdendo no Brasil. Desde as jornadas de junho de 2013, agentes provocadores caracterizados como "black blocs" praticam depredações e outras formas de vandalismo e continuam impunes.

Alegam ser adeptos de uma ideologia anarcoide que utiliza a "violência simbólica" como suposta tática política. Os extremos do espectro político se confundem de tal modo que o comportamento desses milicianos, dispostos a impor seu ponto de vista pela truculência e pela intimidação, merece antes o epíteto de fascista.

Não foi nada "simbólica", aliás, a violência empregada contra o cinegrafista Santiago Andrade, assassinado por dois "black blocs" numa manifestação no Rio em fevereiro de 2014, sem que os criminosos tenham ido a julgamento até hoje.

O roteiro é conhecido. Esses soldados da arruaça se infiltram em protestos de esquerda, cujas lideranças têm medo de repudiá-los. Além de danificar propriedade pública e privada, agridem a polícia com o objetivo de provocar retaliação.

A polícia revela-se pouco preparada para manter a ordem e garantir que apenas os manifestantes violentos sejam coibidos. Não faltaram episódios em que policiais cruzaram os braços em face da baderna ou exorbitaram na repressão, atingindo inocentes.

Desaparecidos de cena, os delinquentes voltaram a agir em meio aos protestos contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) nas noites de quarta-feira (31) e quinta-feira (1º) em São Paulo, atacando prédios no centro da cidade, entre eles a sede deste jornal.

Grupelhos extremistas costumam atrair psicóticos, simplórios e agentes duplos, mas quem manipula os cordéis? O que pretendem tais pescadores de águas turvas? Quem financia e treina essas patrulhas fascistoides? Está mais do que na hora de as autoridades agirem de modo sistemático a fim de desbaratá-las e submeter os responsáveis ao rigor da lei.

Democracias incapazes de reprimir os fanáticos da violência são candidatas a repetir a malfadada República de Weimar, na Alemanha dos anos 1930, tragada pela violência de rua até dar lugar à pior ditadura que jamais houve.

Governo novo

Consumou-se, enfim, o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Por 75% dos votos, o Senado tornou definitivo o afastamento da presidente determinado em 17 de abril pela Câmara, na qual 71% dos deputados haviam votado por suspender a mandatária e levá-la a julgamento –ambas maiorias superiores aos dois terços exigidos em lei.

O processo decorreu em estrita obediência à Constituição, assegurado amplo direito de defesa e sob supervisão de suprema corte insuspeita. As acusações de fraude orçamentária, porém, embora pertinentes enquanto motivo para impeachment, nunca se mostraram irrefutáveis e soaram, para a maioria leiga, como tecnicalidade obscura –e, para uma minoria expressiva, como pretexto de um "golpe parlamentar".

Esta Folha teria preferido, como manifestou diversas vezes, que a extrema gravidade da crise e o inconformismo da sociedade houvessem conduzido à renúncia da chapa eleita em 2014 ou a sua impugnação, caso confirmados na Justiça os indícios de crime eleitoral. Isso levaria à realização de eleições diretas, única forma de conferir legitimidade inconteste ao novo governo. Raramente, no entanto, cenários ideais se concretizam em política.

Michel Temer (PMDB) é o sucessor legal da ex-presidente Dilma Rousseff e está investido, até prova em contrário, da legitimidade formal para governar o país até dezembro de 2018.

A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal e do julgamento, Ricardo Lewandowski, de dissociar a perda do mandato e a inabilitação para exercer cargo público deu ao Senado ensejo para poupar a ex-presidente desta última sanção, quando, em segundo escrutínio, não se alcançou a maioria de dois terços.

Essa conduta pode traduzir falta de convicção condenatória ou desejo de desarmar espíritos, mas viola o parágrafo único do artigo 52 da Constituição, que prescreve a inabilitação como consequência automática da perda do mandato. O destino de Dilma Rousseff, entretanto, é agora assunto privado, conforme seu governo, um dos piores da história nacional, desaparece de vez para ser recolhido aos livros de história.

A prioridade máxima da administração agora confirmada é a recuperação de uma economia em frangalhos. Para tanto, é preciso abandonar as hesitações da interinidade e adotar, como sugeriu o próprio Temer em suas primeiras falas como governante efetivo, atitude mais corajosa e firme. É mandatório que o presidente emita sinais convincentes de que não será candidato a ficar no cargo em 2018.

É, sobretudo, imperativo aprovar no Congresso os projetos de reforma econômica —teto para o gasto público e revisão nas regras da Previdência— que se configuram como alavancas sem as quais o Brasil não emergirá da recessão calamitosa em que atolou há dois anos.

Governo Temer, o recomeço

por ELIO SCHWARTSMANN, NA FOLHAhélio schwartsman

Michel Temer tem a rara oportunidade de iniciar seu governo duas vezes. Espera-se que se valha do segundo começo melhor do que aproveitou o primeiro.

É verdade que as perspectivas econômicas melhoraram, mas isso ocorre por dois motivos principais que têm pouco a ver com ações do governo. O primeiro é que a administração Dilma, e, com ela, a tendência de agravamento da crise, saiu de cena. O segundo é que o ciclo recessivo vai se esgotando naturalmente.

Em termos de atitudes, porém, o governo Temer ainda não fez quase nada além de manifestar a disposição de aprovar um dispositivo constitucional que fixa teto para os gastos públicos e de promover reformas da Previdência e da CLT. São iniciativas importantes e que até tiveram algum impacto positivo sobre as expectativas, mas que ainda estão confinadas ao campo das intenções.

Concretamente, as decisões do governo têm sido no sentido contrário ao da disciplina fiscal. Em primeiro lugar, ele superfaturou o rombo de Dilma, o que lhe dá a chance de gastar mais. Também aquiesceu a uma série de reajustes para a elite do funcionalismo público que passam a mensagem de que a parte difícil do ajuste vai recair basicamente sobre o lado mais fraco, que são os trabalhadores de menor poder aquisitivo da iniciativa privada e suas famílias.

Se Temer quiser de fato começar a arrumar as contas públicas, permitindo que o país volte a crescer de modo consistente, vai precisar mais do que só manifestar o desejo de acertar. Ele terá de aderir a seu próprio plano de contenção de gastos —o que parece difícil para um governo que foi desenhado para atender a um amplo consórcio de interesses de parlamentares. Um acerto apenas parcial dos problemas, com base em remendos negociados de última hora, me parece o cenário mais provável. Se ele se confirmar, o Brasil fica ainda mais amarrado à chamada armadilha da renda média. É pena. 

Comércio paulista cresce, mas sinal de vida ainda é 'broto verde' (por VINICIUS TORRES FREIRE)

Depois da grande queimada, aparecem raros brotos verdes na terra cinzenta. É capim? Erva daninha? Se é broto de árvore, vai vingar? É a impressão que dá a economia brasileira destas semanas em que o incêndio grande parece diminuir.

O faturamento do comércio de São Paulo cresceu 2,2% em junho, em relação a junho do ano passado, segundo a Fecomercio, a federação empresarial do setor.

Em 15 meses, é apenas a segunda vez que o valor das vendas cresce. Mas a tendência, porém, tem sido de melhora na recessão do setor, que começou no segundo trimestre de 2014. O faturamento chegou a cair 12% em setembro de 2015. Note-se que o comércio paulista é um negócio grande, de R$ 570 bilhões por ano.

Parece até bom demais, dadas as circunstâncias. O desemprego aumenta, o rendimento do trabalho baixa ainda cada vez mais rápido e o total de crédito na economia encolhe. No entanto, a confiança dos consumidores vêm crescendo, lentamente, desde a virada de 2015 para 2016.

O sinal de vida no comércio paulista é um "broto verde", expressão e impressão que tantas vezes foi usada e frustrada nas tentativas de enxergar o fim da recessão americana que começou em 2007-2008?

Parece que é, meio solitário e incerto. Na média, ainda há devastação. O nível geral de vendas do comércio paulista regrediu ao que era em 2010, no período pré-dilmiano. As vendas nas concessionárias de veículos caem 32% em relação ao que se faturava no primeiro semestre de 2012, ano bom de negócios; nas lojas de eletrodomésticos e eletrônicos, caem 34%.

Quanto à devastação no Brasil, basta considerar o resultado do PIB, divulgado na quarta-feira (31). O desalento é tamanho que nos animamos com migalhas.

A produção, o PIB, do segundo trimestre foi ainda 3,8% menor que a do segundo trimestre do ano passado. Mas vinha sendo muito pior: queda de 5,4% no primeiro trimestre, de 5,9% no quarto trimestre de 2015, por ora o fundo do poço.

Há uns outros brotos no país: a construção civil despiora, o investimento dá sinal de vida. Em São Paulo, no segundo trimestre, o Estado cresceu pela primeira vez desde o final de 2014. Porém, a arrecadação de impostos do governo paulista continua em queda dramática, de 8,4% no ano, em termos reais, maior ainda que a federal (7,1%).

Para os economistas da Fecomercio, os dados de junho "...consolidam uma avaliação de que uma reversão do ciclo recessivo é real", embora dependente apenas da melhora da confiança no futuro. Ainda assim, esperam que o ano termine zerado, em vez da queda horrível de mais de 6% em 2015.

Os brotos verdes, se são isso mesmo, dependem da rega de um ajuste fiscal, da baixa de juros e de que se ponha na rua o plano ainda nebuloso de concessões de infraestrutura do governo, cansou-se de se dizer.

Na quarta-feira, o Banco Central deu um sinal apagadinho de que a queda de juros pode começar em outubro, se nada mais der errado, ou pelo menos foi assim que os povos dos mercados e do dinheiro interpretaram o comunicado do BC (juros futuros caíram na praça).

No mais, é esperar que decisões e ações vão sair dessa barafunda em geral lamacenta da política.

Comunismo e fascismo são gêmeos ideológicos contra a democracia liberal (por JOÃO PEREIRA COUTINHO)

Morreu Ernst Nolte (1923-2016), um dos mais polêmicos historiadores da Alemanha nazista. E eu, por mero acaso bibliográfico, soube da notícia quando lia, maravilhado, "Fascisme et Communism", uma troca de cartas entre o próprio Nolte e outro gigante da história: o saudoso François Furet (1927-1997).

Eis o problema (e a polêmica) que Nolte nos coloca: será que o fascismo, e em especial o nazismo, foi uma resposta à ameaça comunista? Mais ainda (ou pior ainda): o antissemitismo genocida que marcou o Terceiro Reich pode ser entendido pela desproporcional participação de judeus no socialismo e no bolchevismo?

Perguntas dessas, na Alemanha do pós-Segunda Guerra, fizeram estremecer vários espíritos. Sim, Lênin é anterior a Mussolini; e Mussolini é anterior a Hitler. De igual forma, o Gulag é anterior a Auschwitz. Mas será que fatos meramente cronológicos podem ser também causais?

  Binho Barreto/Editoria de Arte/Folhapress  
 

Sem surpresa, Ernst Nolte era a "bête noir" da historiografia alemã. Se o nazismo foi um "produto" do comunismo, isso não seria uma desculpa para o próprio nazismo?

E o que dizer do antissemitismo de Hitler? Será que ele pode ser justificado pela composição judaica da primeira geração bolchevique?

Nolte sempre se defendeu das interpretações maldosas das suas teorias –e repete o exercício no diálogo com Furet. Nas suas palavras, uma explicação "reativa" do nazismo não desculpa os crimes cometidos pelo regime.

O objetivo de Nolte é outro: procurar "entender" o nazismo (no sentido epistemológico do termo) sem o encerrar nos clichês habituais de "mal absoluto" ou infâmia de um "povo criminoso".

Eu "entendo" as perguntas de Nolte. E "entendo" as reações que elas provocaram. Hoje, casar comunismo e nazismo é moeda corrente para qualquer intelecto civilizado.

Mas as coisas não eram assim na segunda metade do século 20, quando uma longa legião de "idiotas úteis" festejavam sobre o cadáver de Hitler ao mesmo tempo que prestavam vassalagem a um psicopata igual: Stálin.

Mas no debate entre Nolte e Furet, estou com o segundo. O nazismo não é uma mera reação à Revolução Russa de 1917. François Furet prefere olhar para o comunismo e para o fascismo como gêmeos ideológicos contra um mesmo inimigo: a democracia liberal (ou "burguesa", para usar a linguagem das seitas) que emerge na Europa do século 19.

O ódio ao parlamentarismo é igual. O ódio ao capitalismo é igual. A defesa de um regime de partido único é igual. A exortação da violência como meio legítimo de construir o "homem novo" é igual.

Falar de Raça, ou Proletariado, é questão de pormenor quando o fim é semelhante: a destruição da democracia pluralista pela imposição do Estado totalitário. Escusado será dizer que os resultados não poderiam ter sido outros: a mesma desumanidade e a mesma montanha de cadáveres.

De igual forma, estou com François Furet sobre o antissemitismo nazista. Hitler não precisava de bolcheviques judeus para destilar o seu ódio. Capitalistas judeus também serviam (ó supremo paradoxo!). E, além disso, será preciso lembrar que o fascismo de Mussolini não era, de início, uma ideologia estruturalmente antissemita?

É possível estudar o comunismo e o fascismo "racionalmente", como pretende Nolte, desde que isso não signifique o apagamento da mesma fonte iliberal em que ambos beberam abundantemente.

Por último, existe uma dimensão dos fenômenos totalitários que está ausente em Nolte mas também em Furet. É a dimensão pseudo-religiosa do comunismo e do fascismo. Se Deus estava morto, como proclamou um filósofo célebre, estariam as massas finalmente libertas de qualquer "religião"?

Raymond Aron (1905-1983), um compatriota de Furet, deu a resposta em "O Ópio dos Intelectuais" (uma obra-prima que a Três Estrelas editou recentemente): os movimentos totalitários, a começar pelo comunismo, mimetizaram a religião tradicional nos seus ritos e narrativas. Com uma diferença: prometeram aos "humilhados e ofendidos" uma recompensa terrena, e não celestial.

Os anos passam, as leituras acumulam-se. Mas a interpretação de Aron sobre as "religiões seculares" parece-me cada vez a explicação definitiva para tantos "fiéis", "sacerdotes" e executados "heréticos". 

 

 

Fonte: Folha de S. Paulo

NOTÍCIAS RELACIONADAS

Wall Street tem ganhos semanais com investidores digerindo rali
Impacto fiscal de medidas de apoio ao RS está em R$13,4 bi, valor deve aumentar
Dólar cai ante real com declarações de Campos Neto e influência externa
Rio Grande do Sul: Gabinete de Crise de Santa Cruz do Sul apresenta balanço das operações na Região dos Vales
Medidas de compensação da desoneração serão anunciadas na semana que vem, diz Haddad