Manobra para linhão de energia em terra indígena de RR deve enfrentar obstáculos

Publicado em 08/03/2019 09:45

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Por Luciano Costa

SÃO PAULO (Reuters) - A decisão do presidente Jair Bolsonaro de declarar como estratégica para a soberania nacional uma linha de transmissão para conectar Roraima ao sistema elétrico do país gera preocupações com direitos indígenas e poderá ser contestada na Justiça, com os nativos exigindo participação no processo.

O linhão, visto como importante para encerrar a dependência de Roraima de importações de energia da Venezuela, foi licitado ainda em 2011, mas até hoje não obteve licença ambiental de instalação, necessária para início das obras.

A dificuldade é atribuída principalmente à resistência dos índios Waimiri Atroari, uma vez que cerca de 120 dos 715 quilômetros do empreendimento cortariam terras da etnia, traumatizada pelas mortes geradas durante o processo de construção da BR-174, que quase extinguiu o povo indígena nos anos 70.

Para superar o entrave, o Conselho de Defesa Nacional usou o acirramento da crise venezuelana como justificativa para declarar a obra no último mês como "alternativa energética estratégica", alegando riscos ao suprimento local de energia.

Mas a manobra, que segundo o governo busca acelerar o licenciamento, gera temor de que direitos dos índios possam ser atropelados, disse à Reuters o procurador Julio José Araujo Junior, do Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM), que acompanha o caso.

"A medida comporta contestações. Preocupa a tentativa de simplificar o debate, como se os índios fossem empecilho ou impeditivo para a obra. Existe um claro silenciamento desses grupos na construção do empreendimento, desde sua definição, quando se tratou como banalidade o fato de haver uma terra indígena no meio do traçado da linha", afirmou.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT-169) determina que deve haver consulta prévia a indígenas antes de empreendimentos com impacto sobre suas terras.

Essa consulta não tem efeito vinculante, mas os índios querem ver estudos sobre os impactos do linhão e participar do debate, principalmente devido a traumas passados, disse Araujo, ressaltando que os Waimiri Atroari foram quase extintos durante obras da rodovia BR-174, nos anos 70 e 80, período de ditadura militar no Brasil.

O linhão de Boa Vista (RR) a Manaus (AM) foi projetado para acompanhar o traçado da BR na terra indígena, o que autoridades dizem que reduziria impactos ambientais.

"Os índios sofreram uma violação drástica de direitos no passado e aquilo que essa violação propiciou (a BR) agora é usado como facilitador para um novo empreendimento. Esse detalhe é muito perverso, muito duro, e prejudica as discussões, ainda mais se você conduzir isso de forma unilateral", disse Araujo.

O MPF moveu diversas ações contra o linhão nos últimos anos. Em uma delas, obteve liminar que obrigava o governo a promover uma consulta vinculante com os índios sobre o empreendimento, mas a decisão foi suspensa em janeiro.

O projeto está sob responsabilidade da estatal Eletronorte, da Eletrobras, e da Alupar, que já chegou a manifestar interesse em abandonar o negócio devido ao longo atraso.

Agora, a expectativa é de que a obra do linhão comece em julho, segundo o porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros. Ele disse que o governo quer "conversar" com líderes indígenas locais, mas ressaltou que "o interesse da soberania nacional se sobrepõe a outras questões".

QUESTÃO LEGAL

O Ministério de Minas e Energia disse que o licenciamento do linhão será apenas "acelerado", mas envolverá "participação efetiva da comunidade indígena afetada nos estudos de campo para evitar a passagem da linha por sítios considerados sagrados".

Advogados, no entanto, divergem sobre o real alcance da manobra do governo de definir o empreendimento como estratégico.

A sócia da área ambiental do Veirano Advogados, Ana Luci Grizzi, disse que a medida vai apenas acelerar a tramitação do processo de licenciamento nos órgãos ambientais, "sem pular etapas, absolutamente".

Mas outros advogados afirmam que a medida abre brecha para que o governo se veja livre de exigências relacionadas ao licenciamento e à consulta aos índios.

A própria pasta de Minas e Energia disse que a decisão do governo segue acórdão do Supremo Tribunal Federal em julgamento sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol, em 2009.

Na ocasião, o STF apontou que, em casos de "interesse da política de defesa nacional", medidas incluindo "a exploração de alternativas estratégicas de cunho energético... serão implementadas independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai".

O sócio do Campos Mello Advogados, Terence Trennepohl, afirmou que há na lei dispositivo que permitiria ao presidente até dispensar de licenciamento empreendimentos que cooperem "com o desenvolvimento nacional e a defesa civil".

Mas a visão de que tais teses se aplicam ao linhão não é unânime --o MPF, por exemplo, entende que a posição do STF citada pelo governo era válida apenas para o caso Raposa Serra do Sol e não vê argumentos para considerar como urgente e de interesse nacional um projeto vem sendo discutido há anos.

As diferentes posições geram expectativas de que o tema siga como alvo de debates nos tribunais.

"Que isso pode gerar uma discussão judicial, não tenho dúvida nenhuma, mas é uma decisão que tem que ser tomada. O governo deve estar calculando os riscos e se preparando para uma batalha judicial", disse o especialista em energia do Demarest Advogados, Pedro Dante.

Em última instância, opositores do linhão poderiam denunciar eventual descumprimento de direitos indígenas pelo Brasil junto a órgãos internacionais, disse o sócio do Pinheiro Neto Advogados, Werner Grau. "O Brasil poderia ser acusado de descumprir a OIT-169, o que não seria a primeira vez."

A Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) chegou a pedir em 2011 que o Brasil parasse as obras de Belo Monte devido à falta de consulta aos índios. O pleito foi negado pelo governo Dilma Rousseff e a comissão depois alterou a decisão, pedindo medidas de mitigação.

HISTÓRIA VIOLENTA

O professor de Antropologia da Universidade de Brasília Stephen Baines estima que a etnia Wairimi Atroari chegou a ter mais de 6 mil membros no fim do século XIX, número que caiu para por volta de 2 mil nos anos 60 e foi reduzido a 332 indivíduos em 1983, quando ele realizava pesquisas de campo.

Ele disse que o início das obras da BR-174 nos anos 70 levou às aldeias surtos de doenças como gripe e sarampo, mortais para os indígenas, gerando movimento de resistência contra o projeto que incluiu ataques com vítimas fatais contra postos da Funai.

"Os índios haviam entendido as doenças como um ataque de feitiçaria dos brancos querendo eliminá-los", contou Baines.

Ele afirmou que a resposta dos militares foi uma retaliação que incluiu demonstrações de força com rajadas de metralhadoras e granadas ao longo da trajetória da BR-174 em junho de 1975, para tentar acabar com a resistência indígena à construção da estrada.

"É uma história de contato extremamente violenta e traumática. Os mais jovens não vivenciaram isso, mas os mais velhos lembram muito claramente. Você pode chamar de genocídio... foram décadas de ataques, massacres e mortes por epidemias", afirmou.

Em audiência no MPF no final de fevereiro, seis indígenas Waimiri Atroari afirmaram que suas aldeias foram alvos na época de ataques aéreos militares com explosivos e venenos, além de serem enfrentados por tropas terrestres com armas de fogo.

Posteriormente, nos anos 80, a etnia ainda teve parte de sua terra alagada pela hidrelétrica de Balbina, da Eletronorte.

Como compensação pelos danos, no entanto, a estatal passou a patrocinar um programa de apoio aos índios que ajudou a população Wairimi Atroari voltar à marca de 2 mil indivíduos.

(Por Luciano Costa)

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Fonte:
Reuters

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