Na FOLHA: 'O senhor não vota aqui', por PASQUALE CIPRO NETO

Publicado em 09/10/2014 05:30 e atualizado em 02/03/2020 17:02
O professor PASQUALE CIPRO NETO é colunista da Folha de S. Paulo (na edição desta segunda-feira).

'O senhor não vota aqui', por PASQUALE CIPRO NETO

O fato é que impressiona a nossa dificuldade com o texto, com a palavra, com a sílaba e com a/s letra/s

Movido pela minha quase nula esperança de que o Brasil tenha algum jeito, eu havia resolvido adotar a velha e boa sugestão do nosso Hélio Schwartsman --a "saída Taboão". Na verdade, a minha saída seria para um lugar não tão próximo de São Paulo quanto o vizinho município de Taboão da Serra.

Pois bem. Apesar de partilhar o pensamento expresso no último domingo pelo grande Carlos Heitor Cony ("Nada mudará"/"Dá tudo no mesmo"), acabei desistindo da sugestão de Hélio. Fiquei por aqui e fui para a urna. Quando cheguei à sala/seção em que voto, entreguei a minha CNH ao solícito mesário, que imediatamente me perguntou se eu levara o título de eleitor. Disse-lhe que não. Em seguida, ele entregou o meu documento ao mesário que manuseia o caderno em que estão os nomes dos eleitores e os comprovantes de votação, e aí...

E aí o mesário virou e revirou as páginas, virou e revirou, tornou a virá-las e a revirá-las e por fim disparou o peremptório, taxativo veredicto: "O senhor não vota aqui". E eu: "Voto". E ele: "Não vota". Não lembro se ele mesmo ou se outro mesário atalhou e disse algo parecido com isto: "Mudaram os números das salas de algumas seções. Qual é a seção do senhor?" E eu: "Esta".

Como diria Vinicius de Moraes, de repente, não mais que de repente, fez-se presente a solidariedade entre os simpáticos mesários da seção (simpáticos mesmo, sem ironia), que me aconselharam a ir ao balcão de informações para ver onde eu deveria votar. Em nenhum momento algum deles duvidou do procedimento do colega que detinha o caderninho. A cena lembrava uma conversa com os surreais teleatendentes, que insistem em responder a perguntas que não foram feitas, não respondem às que foram feitas, repetem o que já disseram etc.

Pedi licença e perguntei: "Posso olhar o caderno?" Bingo! Lá estava o meu nome, que o mesário não localizara por uma razão muito simples: o brasileiro médio não sabe lidar com a ordem alfabética. Sim, não sabe! Em outras eleições, já vi, muitas vezes, longas filas decorrentes da lentidão dos mesários, causada (a lentidão) pela dificuldade em localizar o nome do eleitor.

Trabalhei como mesário em seis eleições. Nos treinamentos dados pelo TRE, não me lembro de explicações sobre a ordem alfabética. Como sempre fui presidente de seção, antes do início da votação eu sempre orientava os meus colegas de mesa sobre a questão da ordem alfabética, cujo conhecimento não se limita à ordem das letras que formam o nosso alfabeto (a, b, c, d...).

Com esse conhecimento básico, é fácil concluir que "João" vem antes de "Maria", já que o "j" vem antes do "m". E quando dois nomes começam pela mesma letra? Passa-se para a segunda. E quando as duas primeiras letras são iguais? Passa-se para a terceira, e assim por diante. Dessarte, é óbvio que "Pasquale" vem antes de "Paulo", já que a letra "s" vem antes da letra "u".

Não sei se esse tema foi visto no treinamento dado pelo TRE neste ano, mas não duvido de que tenha sido abordado e não tenha sido absorvido por boa parte dos mesários. O fato é que é impressionante a nossa dificuldade com o texto, com a palavra, com a sílaba e com a/s letra/s _com o letramento, enfim.

O prezado leitor certamente sabe que avaliações feitas por organismos sérios informam que apenas um em cada quatro brasileiros letrados é capaz de entender um texto (escrito) de complexidade média. Vamos mal, muito mal. E não vejo nenhuma luzinha adiante. É isso.

Fonte: Folha de S. Paulo

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