Debate biografias versus liberdade de expressão: 3 artigos brilhantes...

Publicado em 18/10/2013 17:29 e atualizado em 20/10/2013 12:06
1) ‘Na pelada, uma biografia de Chico’, de Márvio dos Anjos; 2) ‘Liberdade é poder falar mal’, de Carlos Brickmann; 3) ‘Paradoxo’, por Roberto Damatta

‘Na pelada, uma biografia de Chico’, de Márvio dos Anjos

Publicado no Blog Márvio dos Anjos

MÁRVIO DOS ANJOS

Já joguei bola com Chico Buarque, no campo do Politheama, no Recreio, Zona Oeste do Rio. Eu tinha 20 e poucos anos, era voluntarioso nos carrinhos e considerado um perigo aos sessentões em campo. Jogava às segundas e quintas, por quase dois anos, creio que entre 1998 e 2000.

Logo na entrada havia uma proibição expressa contra a entrada de jornalistas e chatos em geral. Naquele campo, propriedade privada, fazia sentido, e eu ainda não tinha me formado na UFRJ.

 

Às vezes, eu me dava conta de que estava jogando ao lado daquele Chico, aquele poeta de tantas canções vigorosas, ídolo de meus pais, formador da identidade de tantas mulheres, burlador da ditadura, exilado político, referência minha para letras de música. “Caralho, é o Chico”, a mente me gritava. E tudo virava um privilégio, o qual pude desfrutar por ao menos dois anos.

Lembro-me de ter atuado no time dele poucas vezes, levado pelo guitarrista Fred Nascimento, de carona com Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana. Não fiz sucesso como goleiro; sempre fui espalhafatoso e fanfarrão demais para o tipo de goleiro que o brasileiro ama: discreto, sacerdotal, mártir. Acabei barrado, e me tornei adversário.

O Politheama era uma panela típica, clássica de quem é o dono da pelada: Chico, Carlinhos Vergueiro e Vinicius França formavam a espinha dorsal, que se reforçava da melhor juventude disponível (um pouco como a carreira musical de Caetano, o que não reprovo: reciclar-se é uma arte) e obrigatoriamente jogava as duas primeiras partidas. Terminadas, eles saíam ao vestiário, felizes com o resultado, e tomavam suas duchas e perfumados, deixavam o campo. Chico costumava conversar pouco com novatos: sua timidez e seu pouco espaço a intimidades são verdadeiros.

(Não tenho muito a acrescentar às mulheres e aos gays sobre o que vi no vestiário, lamento, não era meu foco. Posso apenas confirmar que Antônio Pitanga é sempre uma presença perceptível)

E sim, os Politheamas saíam sempre felizes. Porque o Politheama é árbitro inconteste em seu próprio gramado. Todas as marcações são a favor deles, a fim de manter a lendária invencibilidade. Meu Deus, COMO roubam.

A verdade é que, mesmo sabendo disso tudo, havia um desafio que me levava a continuar contra Chico e seus amigos. Nas poucas vezes em que joguei contra o Politheama e ganhei, comemorei como um louco. Porque sabia que eram vitórias absolutas, indiscutíveis. Foram vivências como essa que me fizeram crer que time bom ganha até de juiz. E olhe que os times da Série A do Brasileiro não chegam nem perto de enfrentar por um ano inteiro o nível da arbitragem que rolava no Recreio.

Escrevo sobre Chico Buarque porque a polêmica das biografias precisa ser situada também no espírito esportivo que favorece o espírito democrático. E porque sempre que tocarmos neste assunto falaremos da proibição estúpida que limitou por anos o acesso ao magnífico “Estrela Solitária”, relato de Ruy Castro sobre Garrincha.

Hoje, Chico Buarque defende no Globo o direito de Roberto Carlos e de si mesmo à privacidade, afirmando até que foi justa a indenização às filhas de Garrincha, por conta dos danos que “Estrela Solitária” lhes infligiu no além-túmulo. O livro conta o drama do ponta botafoguense contra o alcoolismo, seus filhos no exterior e detalha sua portentosa centimetragem íntima, o que foi considerado chulo pelas filhas e pela maioria da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 2006, que ganharam o processo contra a editora Companhia das Letras: indenizações de 100 salários mínimos para cada uma delas, pelos danos morais, com juros; pelos danos materiais, mais 5% sobre o total das vendas do livro, com juros. Fico pensando se tais danos – se é que existem, eu não os vejo – são comparáveis com o lugar literário e memorial que Garrincha conquistou após a épica pesquisa de Ruy Castro – que até filme virou, ainda que malogrado. Seria mais justo com Garrincha que, até a morte de cada uma de suas filhas, sua realidade fosse legada ao esquecimento e virasse apenas um personagem de mitologias – aquelas que Ruy Castro desmente com riqueza de detalhes e que a tradição oral da crônica esportiva insistiu em pintar?

Em suma, o país perde o direito à análise e à memória imediatas por caprichos de filhos, gente que, muitas das vezes, divide apenas DNA e olhe lá. Para mim, é o pior lado da nossa atual legislação das biografias. E é isto que Chico considera justo.

Mas Chico Buarque vai além em seu artigo. Ele afirma que, ao contrário do que está na biografia de Roberto Carlos, não foi entrevistado por Paulo César de Araújo* para a biografia censurada de Roberto Carlos, que levou 15 anos para ser escrita. E declara que não deu a declaração, publicada no livro Eu Não Sou Cachorro Não que Paulo César encontrou em edição de 1971 no extinto jornal Última Hora – Chico supostamente criticaria posturas de Caetano e Gil que manchavam a imagem do país no exterior durante a ditadura. São acusações sérias. Também repudio as censuras que sofreu, como as que atribui à Globo.

Li Eu Não Sou Cachorro Não. É uma obra-prima sobre como o regime militar perseguiu a música popular brega e traz uma enorme meditação sobre certos preconceitos da crítica musical brasileira, que privilegiava os músicos da MPB “universitária”, como Chico, Caetano e Gil, e se esquecia de ver que os cantores do Brasil profundo, como Wando, Amado Batista e Odair José eram tão perseguidos quanto – recomendo esse livro a qualquer um. Como qualquer trabalho humano, pode ter erros. Como qualquer trabalho jornalístico – e as biografias são jornalismo –, pode ter gralhas a serem corrigidas e desculpadas em edições seguintes. Se Paulo César incorreu em erro que mancha a reputação de Chico, que o livro seja corrigido e/ou o compositor indenizado. O livro sobreviveria tranquilamente sem a menção a Chico Buarque, sem prejuízo da importância. Mas nada justificaria que fosse proibido ao grande público.

E claro, sou da opinião que a pelada revela o homem. Tudo que alguém é capaz de fazer por vontade de vencer numa partida amadora é reveladora do caráter, das posturas, do espírito nobre sobre o qual Coubertin estabeleceu as fundações dos Jogos Olímpicos. Primeiro porque o esporte é só uma brincadeira tornada séria – ficou importante porque somos gigolôs da metafísica: queremos ver narrativa e transcendência em tudo, porque nossas vidas precisam desesperada e diariamente de um sentido, e o futebol guarda muito espaço para o imprevisível que nos favorece, mesmo quando somos inferiores tecnicamente. Metaforicamente, é um oásis.

A rigor, porém, um partida é uma partida é uma partida.

E a vitória tem matizes. Uma vitória limpa sempre me pareceu infinitamente mais saborosa do que aquele papo de “gostoso é ganhar de pênalti roubado, aos 47 do segundo tempo”. Uma vez li isso numa crônica e, garoto influenciável ainda, repeti para o meu pai, como se verdade absoluta fosse. Ele me respondeu: “Isso é uma bobagem. Tem que ser de goleada, dando show de bola”. E isso ecoa em mim até hoje: prefiro ganhar sem trapaças ou autoritarismos.

Chico Buarque é hoje um dos donos da bola do campo cultural brasileiro. Chegou a esse lugar com muito talento, suor e estratégia. Raramente dá entrevistas – os poucos que têm acesso a si são tidos e havidos como privilegiados, e cultivam esse lugar. Na MPB, tem o poder da bênção, e é um dos elogios mais disputados por jovens compositores e intérpretes. Aparentemente, na literatura, também chegou à indiscutibilidade. Aparentemente, não vê problema em pedir faltas da mesma maneira que pede no Politheama.

O problema é que o Politheama é propriedade privada. Tudo certo, embora pouco esportivo. Não há por que liberar entrada de jornalistas. Dou total razão à plaquinha que nos proíbe, se ainda estiver lá. Prometo nem tentar ficar na de fora.

Mas o que está em jogo na questão das biografias é uma regra que valha para todos e que estimule o cultivo de memórias e análises sobre o que o Brasil foi e sentiu. A busca por uma lei que permita o trabalho jornalístico honesto e a pesquisa histórica séria sobre figuras públicas que construíram o país. Artistas, políticos, esportistas, combatentes, empresários, o que for. Ao defender que haja diferenciações entre artistas e políticos, Chico comprova a frase do escritor Albert Camus:

“Um escravo começa clamando por Justiça e termina em busca de uma coroa”.

O ônus da vida pública existe, sim. É possível que fatos da intimidade sejam revelados – nas democracias ocidentais, essa foi a opção. E, em democracia, não existe censura. Isso é indiscutível e qualquer regra que signifique autorização prévia de trabalho jornalístico significa um “Cálice”. Há a Justiça e a briga por indenização.

Que Chico não queira que seu musical “Roda Viva” seja remontado, se o renega, não vejo problema algum. Está vivo, não se reconhece mais na peça e tem autoridade. É propriedade sua. Mas a história em torno de “Roda Viva”, o que representou em 1968, pode e deve ser contada e recontada. Chico canalizava anseios políticos e sociais por mais democracia enquanto a ditadura durou.

Hoje, dono da bola, apita as faltas que lhe interessam. Danem-se a democracia e seu espírito coletivizante, danem-se as regras. Fiquem com a história oficial, sem contestações, pouco importa se é a real inspiração de “Com Açúcar, Com Afeto”, ou se é o suicídio falsificado de Wladimir Herzog, ou se é o “Quem Te Viu Quem Te Vê” saindo pela culatra e debatendo sua posição classista sobre biografias.

Só que esta posição cria brechas perigosíssimas. Se biografias são jornalismo, o que impediria qualquer figura pública de proibir perfis publicados em três páginas de jornal ou revista? Já não basta ser extremamente homeopata nas entrevistas que você detesta conceder? Se crônicas também são um tipo de jornalismo e podem ser musicadas, por que não proibir canções?

Hoje você é quem manda, Chico, como manda no Politheama. Falou tá falado, o lobby está em forma e há quem te siga e defenda. Mas saiba que há um time grande que adorará te ver derrotado nesta partida, pelo bem de certos valores que sua obra imortaliza.

*O escritor se defende das duas acusações feitas por Chico Buarque aqui.

 

 

Trecho polêmico

Chico: acusação infundada

Chico: acusação infundada

Em seu pedido de desculpas ao biógrafo de Roberto Carlos, Chico Buarque admite que deu, sim, uma entrevista a Paulo César de Araújo – até porque não havia como desmentir o vídeo tornado público por Araújo. Mas da metade para o final do texto, Chico parte para cima do biógrafo. Mas, novamente, a memória traiu Chico Buarque.

Eis o que disse o compositor:

- Quanto à matéria da Última Hora, mantenho o que disse. Eu não falaria com a Última Hora (de São Paulo) de 1970, que era um jornal policial, supostamente ligado a esquadrões da morte. Eu não daria entrevista a um jornal desses, muito menos para criticar a postura política de Caetano e Gil, que estavam no exílio. Não, Paulo Cesar de Araújo, eu não falava com repórteres da Última Hora em 1970. Para sua informação, a entrevista que dei ao Mario Prata em 1974 foi para aÚltima Hora de Samuel Wainer, então diretor de redação, que evidentemente nada tinha a ver com a Última Hora de 1970, que você tem como fonte”.

Quem consultar a última página do fundamental Minha Razão de Viver, o livro de memórias de Samuel Wainer editado por Augusto Nunes, terá a prova de que Chico atacou Araújo sem razão também neste tópico.

Ali, Wainer conta que vendeu a Última Hora em 21 de abril de 1972 e deixou o jornal. Portanto, em 1970, Wainer era ainda o dono do jornal para o qual voltou, como redator-chefe, entre 1974 e 1975. Provavelmente, Chico confundiu a Última Hora com a Folha da Tarde.

(Atualização, às 22h02:  Embora, de fato, Samuel Wainer narre ter vendido a UH em 1972, em outro trecho do livro ele  afirma que em 1965 vendeu a edição paulista do jornal ao grupo Folha)

Por Lauro Jardim

‘Liberdade é poder falar mal’, de Carlos Brickmann

Publicado no Observatório da Imprensa

CARLOS BRICKMANN

Toda essa luta a respeito de autorizar ou não biografias tem tudo a ver com um assunto que nos diz respeito, sejamos ou não biógrafos: a liberdade de imprensa – ou seu sinônimo, a liberdade de expressão. Se precisamos de autorização para falar de Roberto Carlos, de Caetano Veloso, se estamos sujeitos a proibição da família quando falamos do grande Mané Garrincha, a liberdade de expressão simplesmente desapareceu do país. E o beneficiário maior da liberdade de expressão, o cidadão que tem o direito de ser informado, perde esse direito.

 

Não falemos de personagens atuais; falemos de um passado já antigo. A família imperial poderia processar-nos por relatar, num livro ou numa matéria jornalística, o caso entre D. Pedro 1º e a Marquesa de Santos? Ou de um passado mais recente: a família do ex-presidente Juscelino Kubitschek poderia processar-nos por relembrar o caso que manteve por vinte anos com Maria Lúcia Pedroso? Ou, indo mais longe, a família de Adolf Hitler poderia tentar proibir que se publique sua biografia, onde constam fatos desabonadores para sua reputação?

Voltando aos tempos atuais: Palmério Dória, em seu Honoráveis Bandidos, faz uma narrativa cruel sobre a família Sarney. Teremos de enfrentar a realidade de que Sarney, o donatário do Maranhão, o presidente do partido de apoio ao regime militar, é mais tolerante do que nossos artistas supostamente libertários?

Não, não dá. E dizer que os biógrafos ganham ao narrar a vida de seus personagens, enquanto estes nada recebem, é uma grosseira tentativa de mistificação. Caetano Velloso, por exemplo, nada pagou à atriz Vera Zimmerman, sua musa na composição Vera Gata; não teria sentido pagar à família de Betinho pela homenagem a ele prestada por Aldir Blanc e João Bosco em O Bêbado e a Equilibrista; Laurentino Gomes, em sua festejada trilogia sobre o início do Brasil como nação (1808, 1822 e 1889), deveria pagar a quem – à família Orléans e Bragança, ao Chalaça, à família Hohenzolern, da imperatriz Leopoldina, ao extinto reino das Duas Sicílias, origem da imperatriz Teresa Cristina?

O fato é que todos gostam da liberdade de expressão quando esta liberdade serve para falar bem deles. Poucos a toleram quando a realidade não é tão favorável. E o argumento de que, numa biografia, pode haver elementos de inverdade, é absolutamente ridículo: para isso existe a Justiça.

E, cá entre nós, este colunista leu uma antiga biografia de Roberto Carlos, O Rei e Eu, escrita por seu ex-mordomo, Nicholas Mariano.

E até hoje não conseguiu entender por que Roberto Carlos lutou tanto para proibi-la e recolher os exemplares em circulação.

Os fatos incertos
Livros, jornais, revistas, TV, rádio, tudo OK: as informações falsas são rastreáveis e, caso configurem crime, podem levar seus responsáveis à Justiça. O problema maior é outro: o da informação leviana. De repente, sem que isso represente prejuízo material direto, aparece um poema que é atribuído a Ruy Barbosa (e que, na verdade, tem apenas um verso baseado em frase de Ruy). Há coisas que causam prejuízo indireto à reputação de grandes escritores, mas que não são passíveis de processo: atribuir textos de qualidade duvidosa a Millôr, Veríssimo, Mário Quintana. Há informações erradas, distribuídas de boa-fé, por gente que acha que estando escrito é verdade – e toca a postar periodicamente notas imensas informando que um locutor da Globo foi demitido (embora ele continue aparecendo todos os dias na TV), que a imprensa, sob censura, não divulga que a Lei da Ficha Limpa foi rejeitada (quando já está sendo aplicada há alguns anos), coisas desse tipo. Nada a fazer.

Mas também há brigadas especializadas, remuneradas, que passam um bom tempo criando perfis desligados da realidade, para uso em atividades específicas – geralmente eleições. Com base nesses perfis (para usar a linguagem do Facebook, fake), saem difamações pesadas contra adversários. Este é um problema que precisa ser equacionado.

Biografias? Esta é uma falsa questão, levantada sabe-se lá por que motivo – e, seja qual for, equivocado.

‘Paradoxo’, por Roberto Damatta

Publicado no jornal O Globo 

ROBERTO DAMATTA

Quando cheguei em Harvard em 1963, um jovem instrutor que tinha interesse num país obscuro e confuso chamado Brasil teve a gentileza de me mostrar a universidade. Aqui morou Agassiz, ali Galbraith, acolá Talcott Parsons, indicava meu anfitrião. Vi o Peabody Museum, onde estudei, e finalmente, como uma apoteose, fui levado à maior biblioteca universitária do planeta: a Widener Library, com seus 30 mil metros quadrados e seus 3 milhões de livros, que, mudos e alinhavados em imensas prateleiras, formam um labirinto de 92 quilômetros. Essa é apenas uma parte dos mais de 16 milhões de volumes do sistema de bibliotecas da universidade, explicou meu generoso guia. Só fiquei tão impressionado quando fiz minha primeira comunhão, falei com Lévi-Strauss e entrei na aldeia dos índios Gaviões pela primeira vez nos idos de 1961. Naquela época, era o leitor quem localizava o livro. Na Widener encontrei toda a obra de Machado de Assis e uma coleção completa dos Boletins do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que usei na minha tese de doutoramento sobre a organização social dos índios Apinayé.

 

No meio da visita, afastei-me do meu guia por alguns segundos, o suficiente para me perder em meio às estantes. Encontrando-o um tanto aflito um pouco depois, fui advertido. “Tome cuidado. Um aluno ficou dois dias perdido aqui dentro e foi encontrado por acaso pela mais antiga bibliotecária, uma certa Miss Page, cujo fantasma, dizem, especializou-se em resgatar leitores cuja vida intelectual os leva a se perderem em meio aos livros.” Sorri com essa história semelhante a um conto de Borges.

Todos sabem que os livros, os princípios, os mandamentos e todas as nobres receitas podem ser fontes de desvios e loucuras. Eles são escritos para iluminar, mas em certos momentos tornam-se obstáculos. Ficar perdido numa biblioteca não seria um sinal de submergir nas ideias que saem como vespas ou borboletas do seus livros? Eis um paradoxo.

A primeira vez que ouvi a palavra “paradoxo” foi pela boca de meu tio Sílvio no telefone. Ele fazia uma complicada ligação interurbana e encantou-se pela voz da telefonista. Como queria localizar um amigo, ele disse perto de um menino curioso com uma memória literária: “Mas isso não é um paradoxo? Estou procurando um amigo e encontro uma bela voz de mulher!” Ouvi a palavra pelo menos quatro ou cinco vezes naquele telefonema de alguns minutos, o qual terminou num encontro entre meu tio e a operadora.

Aprendi, antes de ter lido o famoso livro do filosofo de Oxford, John L. Austin, que as palavras também faziam coisas. Dias depois, soube que a telefonista era feia e que o encontro fora, ele próprio, um paradoxo!

Nada mais paradoxal do que os arautos do impossível, mas poeticamente utópico, desafiador e corajoso ─ “É proibido proibir” ─ proibirem biografias. Quem vive do público e ganha do povo a simpatia que endeusa naquilo que chamamos de “sucesso”, não pode impedir que suas vidas sejam lidas de fora para dentro. Nisso, o contraste com os Estados Unidos é, mais uma vez, flagrante. No Brasil abundam as “memórias” nas quais o ponto de vista é o do sujeito: a visão de dentro para fora. Nos Estados Unidos, predominam as biografias ─ essas vidas contadas de fora para dentro, geralmente decepcionantes para a autoimagem que os ricos e famosos têm de si mesmos. Fiquei chocado com as novas biografias de Thomas Jefferson ao saber que esse pilar do igualitarismo teve como amante uma menor de idade, negra, escrava e criada de suas filhas.

Todas as vidas humanas contêm paradoxos. Como aprendemos com Caetano Veloso e talvez com Schopenhauer, “de perto ninguém é normal”. Seria isso um bom argumento para tornar a intimidade pessoal mais sagrada do que a liberdade de escrever livremente sobre o outro ─ quem quer que ele seja? Quem vale mais? A vida pessoal de quem deve tudo ao público, ou a liberdade de escrever? Os gênios morrem, mas a obra fica. Faz alguma diferença saber que Kafka e Benjamin Franklin eram superdesorganizados e que Cole Porter era gay? O mundo está repleto de gente desorganizada e de gays que jamais serão Kafkas, Franklins ou Porters!

Eu moro em Niterói e já estou imaginando como vamos nos ligar à Cidade Maravilhosa quando o viaduto com vigas de aço especial, feitas para durar séculos, for derrubado. O sumiço de parte dessas vigas e as três horas que levo de minha casa em Piratininga à PUC de carro arrefecem o meu entusiasmo pelo progresso. Um dia, diz meu lado malévolo, vão roubar a Ponte Rio-Niterói ou o Palácio do Alvorada. Teremos um Porto Maravilha, sem dúvida, mas paradoxalmente banhado pelas águas imundas da imensa sentina que hoje é a Baía de Guanabara.

Consolo-me com Vinicius de Moraes na sua poesia musicada que mais me conforta e comove:

“Às vezes quero crer mas não consigo
É tudo uma total insensatez
Ai pergunto a Deus: escute amigo,
se foi prá desfazer por que que fez?
Mas não tem nada não
Tenho meu violão…”

 

‘U zianque, a zelite, o vendaval’, por Carlos Brickmann

Publicado na coluna de Carlos Brickmann

Faz 50 anos. Diante da movimentação das Ligas Camponesas, do desafio à hierarquia militar, de anúncios de gente ligada ao Governo sobre reformas “na lei ou na marra”, o governador paulista Adhemar de Barros advertiu: “Vai chover”. Choveu. A chuva inundou o Brasil por 21 anos, e tem consequências até hoje. 

Dilma Rousseff teve de chamar o Exército para garantir o leilão do campo petrolífero de Libra, no pré-sal, marcado para esta segunda. Os petroleiros decidiram entrar em greve contra o leilão, acusando as elites brasileiras de vender o país aos estrangeiros ─ de novo, a ligação entre o que chamam de A Zelite e U Zianque. Este leilão é defendido por um especialista no ramo, Haroldo Lima, líder histórico do Partido Comunista do Brasil, que pode ser tudo menos amigo du Zianque. Aliás, muitas das grandes empresas petrolíferas ocidentais preferiram ficar fora; mas as grandes estatais petrolíferas chinesas estão na disputa. Sejam suas alegações falsas ou não, a greve dos petroleiros é explosiva: pode parar o país ─ como, em 1973, a greve dos caminhoneiros parou o Chile. E deu no que deu.

Um Governo que, para cumprir sua decisão, precisa chamar o Exército, mostra que não se sente forte. Instituições que não conseguem impedir o MST e o MTST, as Ligas Camponesas de hoje, de invadir prédios do Governo e ocupar áreas privadas, nem se sentem em condições de enfrentar mascarados que usam porretes, marretas, estilingues e pedras, mostram fragilidade. Exército e Polícias estão descontentes com verbas e salários.

O clima é instável, sujeito a chuvas.

Pequim é aqui
O Windsor Barra Hotel, um dos mais luxuosos do Rio, com 338 apartamentos de frente para o mar, está inteiramente tomado por chineses. Por coincidência, este é o hotel em que será realizado o leilão do campo petrolífero de Libra.

A escolha do nome
Citando Shakespeare, se uma rosa tivesse outro nome teria o mesmo perfume. Mas nome é tão importante que um papa, ao ser eleito, escolhe como será chamado. O novo nome costuma indicar a linha pastoral que pretende seguir.

Um grupo de empresários privados quer construir um novo aeroporto em São Paulo, destinado a aviões executivos ─ aeroporto, aliás, contestado por ambientalistas. Nome do empreendimento, a ser erguido na região de Parelheiros: Aeródromo Harpia. Que significa Harpia? De acordo com o dicionário Aulete, Harpia pode ser: a) monstro da mitologia grega com cabeça de mulher e corpo de abutre; b) pessoa ávida, avarenta e de má índole, capaz de extorquir as outras pessoas; c) gavião real. Ao escolher o nome, certamente os empreendedores pensaram no gavião real ─ uma bela e imensa ave de rapina, com envergadura que atinge dois metros. De acordo com o mesmo dicionário, o gavião-real (Harpia Harpyja) possui fortes garras afiadas, capazes de capturar grandes mamíferos.

Pois é.

Brasil…
O caro leitor se manifestou nas ruas contra o desperdício de dinheiro público? Pois a Escola de Samba Grande Rio vai desfilar, no próximo Carnaval, em homenagem à cidade de Maricá. Para garantir o bom andamento do desfile, o prefeito petista de Maricá, RJ, Washington Quaquá, já havia destinado R$ 3 milhões do Tesouro municipal para a escola.

Parece que não foi o bastante: Quaquá estuda aumentar o patrocínio da escola de samba em mais um milhão de reais.

…meu Brasil brasileiro…
Andressa Mendonça, esposa do bicheiro Carlinhos Cachoeira, filiou-se ao PSL de Goiás e deve se candidatar a deputada federal. Segundo o presidente regional do PSL goiano, Dário Paiva, a Sra. Cachoeira é “o símbolo da força da mulher”. Andressa Mendonça está solta sob fiança. Há pouco mais de um ano, foi presa ao dizer que tinha um dossiê sobre o juiz Alderico Souza Santos.

…meu mulato inzoneiro…
José Roberto Arruda, ex-governador de Brasília, preso no exercício do mandato, entrou no PR. Entraram também no partido, pensando nas eleições do ano que vem, Brizola Neto, ex-PDT, e o usineiro Maurílio Biaggi Jr. O PR é comandado por Waldemar Costa Neto, condenado no processo do Mensalão.

…vou cantar-te nos meus versos
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. E ambas não se misturam. Chico Buarque de Holanda falou mais de uma besteira na polêmica sobre biografias ─ inclusive negando ter dado uma entrevista que foi gravada e filmada. Mas não é por isso que deve ser desqualificado. É um dos maiores letristas brasileiros.

A música de suas canções não é tão boa quanto a letra, mas assim mesmo é de ótima qualidade. Como cantor, é aceitável. Como escritor, é chato. E, quando fala de política, é velho. Mas querer que o compositor de A Banda e de Atrás da Porta atinja nível igual quando fala de política, é pedir demais.

É o mesmo que achar que Pelé, só por ser Pelé, tem de ser um grande compositor. Pelé até acha “o Édson” um bom compositor, como Chico Buarque se acha um bom jogador de futebol (tanto que é titular no time de que é dono, o Polytheama). Pelé, calado, disse Romário, é um poeta; Chico, dando entrevista, poeta é que não é.

‘PAC imobiliário, de novo’, editorial do Estadão

Publicado no Estadão desta sexta-feira

Apresentado pelo governo como principal componente de sua política de desenvolvimento, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) continua sendo, acima de tudo, um grande empreendimento imobiliário. Foram aplicados até o fim de agosto, em todos os projetos, R$ 665 bilhões, 67,2% do total previsto para o PAC 2, desenhado para o período 2011-2014, segundo o balanço divulgado ontem pelos ministros do Planejamento, Miriam Belchior, e da Fazenda, Guido Mantega. Mas R$ 217,4 bilhões, cerca de um terço do valor aplicado, foram destinados a financiamentos imobiliários. Juntando a essa parcela os R$ 60 bilhões gastos com o Minha Casa, Minha Vida, chega-se a 41,7% do total aplicado.

A predominância dos projetos imobiliários fica ainda mais ressaltada quando se consideram somente as “ações concluídas” a partir de 2011 e avaliadas em R$ 448,1 bilhões. A soma destinada a construções habitacionais, financiamentos imobiliários e urbanização de assentamentos precários chegou a R$ 277,7 bilhões, ou 62%, quase dois terços, portanto, daquelas ações.

Ninguém contesta a importância de programas de moradia e de urbanização. Ao contrário: ainda faltaria investir muito mais em saneamento para complementar essas iniciativas de interesse social. Mas um programa acelerador do crescimento – com efeitos estruturais e, portanto, de longo prazo – só produzirá os benefícios prometidos e alardeados pelo governo se for destinado à eliminação de gargalos e à elevação da produtividade geral da economia, atualmente muito baixa.

No entanto, a parte mais bem-sucedida do PAC continua sendo a imobiliária e isso se explica facilmente: é muito mais simples liberar financiamentos do que elaborar e executar projetos de infraestrutura ou estabelecer parcerias com o setor privado.

Um dia antes da apresentação do oitavo balanço do PAC 2, o ministro dos Transportes, César Borges, falou sobre o baixo grau de realização de investimentos em sua área – pouco menos de metade dos R$ 15 bilhões previstos para o ano. Ele atribuiu o resultado à greve de dois meses no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), às dificuldades de elaboração de projetos executivos e aos problemas de obtenção de licenças ambientais. Num balanço mais sintético, a grande dificuldade é mesmo o despreparo do governo federal para preparar projetos e entregar resultados. Frequentemente, nem sequer as normas do Tribunal de Contas da União (TCU) são levadas em conta e também isso resulta em suspensão e em atraso de obras.

Na apresentação oficial, a maior parte dos projetos do PAC tem sempre andamento satisfatório e quase tudo caminha no ritmo desejável. Na prática, raramente essa avaliação se revela adequada, porque a apresentação otimista muitas vezes oculta a revisão de planos e o alongamento de prazos. O atraso na realização dos contratos de concessão na área de logística desmente o discurso otimista. Um ano depois de lançado o plano setorial, muito pouco foi licitado, porque os critérios do governo têm sido rejeitados pelos investidores potenciais. Novo teste importante deve ocorrer neste mês, com a licitação do Campo de Libra, no pré-sal.

Em longo discurso na apresentação do balanço, o ministro da Fazenda falou com aparente entusiasmo sobre o crescimento econômico do Brasil – como se o País estivesse desde 2011 em vigorosa expansão – e ressaltou uma feliz combinação entre planejamento e investimento. Mas essa combinação é imaginária, assim como a solidez fiscal e a inflação na meta e sob controle, realizações alardeadas pela presidente Dilma Rousseff.

Se as projeções mais otimistas forem confirmadas, o total investido em máquinas, equipamentos, obras civis e projetos de infraestrutura voltará neste ano para pouco mais de 19% do Produto Interno Bruto, depois de uma queda no ano passado. Até setembro, o Tesouro só pagou 35,7% dos R$ 91,2 bilhões autorizados para investimento no Orçamento federal de 2013, segundo a organização Contas Abertas. Descontada a inflação, o valor pago foi menor que o de um ano antes. Não dá para soltar rojões por esse resultado.

(O Estado de S. Paulo)

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Fonte:
Blog Augusto Nunes (veja.com.br)

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