Populismo e violência -- EDITORIAL DESTE DOMINGO

Publicado em 11/05/2014 15:22
  • EM O Estado de S.Paulo

As duas principais cidades do País, São Paulo e Rio de Janeiro, foram sacudidas na quinta-feira por manifestações públicas que em muitos pontos descambaram para a violência. Na capital paulista, cinco movimentos - três deles simultâneos - levaram às ruas militantes sem-teto que invadiram e picharam as sedes das três maiores empreiteiras responsáveis pelas obras da Copa do Mundo. No Rio, motoristas e cobradores em greve depredaram 467 ônibus - isso mesmo, quase meio milhar. O grave não são esses lamentáveis episódios em si. Gravíssimo é o fato de que eles estão se tornando banais, corriqueiros, cada vez mais descontrolados, revelando a cada dia com maior nitidez um cenário de convulsão social que ninguém sabe onde e como vai terminar.

Manifestações populares pacíficas, movimentos reivindicatórios ordeiros, atos públicos de protesto realizados sem violência são importantes para o aperfeiçoamento e fortalecimento das instituições democráticas.

Mas, quando se olha para o que está acontecendo em todo o País, o que se vê é muito diferente disso. Há fatores perturbadores que precisam ser levados em conta na avaliação dessas manifestações e da posição que o poder público tem assumido diante delas.

Um desses fatores é, obviamente, o sistemático desrespeito à lei e o desprezo pela segurança pública. Ninguém tem o direito, por mais justa que seja a causa que defende, de violar direitos alheios e muito menos de colocar em risco a integridade física de pessoas e do patrimônio público e privado, promovendo depredações e invadindo propriedades. São atos que a lei proíbe e pune e que o bom senso repele por serem contrários à boa convivência democrática.

Por outro lado, a intensidade com que avultam essas manifestações, abrangendo um amplo universo de agendas específicas - lamentavelmente pontuadas por atos de violência -, sugere que a sociedade brasileira está insatisfeita, inconformada, revoltada.

Mas este não é o país maravilhoso que em dez anos promoveu o milagre do resgate social dos desvalidos e se projetou triunfante na cena antes só frequentada pelas grandes potências mundiais? Não é o país em que o povo pode contar com as promessas de que tudo vai ficar melhor ainda, pois há infinitas bondades a serem sacadas da cornucópia dos poderosos?

É claro que o governo - que para onde olhe só enxerga urnas eleitorais - tem tudo a ver com o sentimento difuso de insatisfação que permeia a sociedade. Pois predomina o sentimento, nem sempre expresso com clareza, de que as conquistas das últimas décadas, obtidas com grandes sacrifícios - desde o controle da inflação e a valorização da moeda até uma melhor distribuição de renda -, correm sério risco diante da incompetência administrativa de um governo unicamente preocupado em se manter no poder.

A tudo isso se somam os temores gerados pela cúmplice despreocupação do governo com o gangsterismo que floresce em certos movimentos ditos sociais - aqueles que lideram a violência e o esbulho.

Afinal, que outra interpretação dar ao fato de a presidente Dilma Rousseff abrir espaço em sua agenda para dar atenção a manifestantes que, ao lado do local do encontro, estão cometendo o crime de invadir uma propriedade privada? Atitudes de mero oportunismo eleitoral como essa são, no mínimo, antipedagógicas do ponto de vista do exercício da cidadania. Afinal, se a chefe do governo é tolerante com invasores de Itaquera, por que não o será também com outros crimes?

Aos invasores que saíram do encontro com a presidente embalados pela promessa de que tudo será feito para incluí-los no Minha Casa, Minha Vida, cabe a piedosa advertência de que, se tudo der certo, correrão o risco de se tornarem eles próprios vítimas do crime que hoje praticam, pois até mesmo no programa habitacional do governo as invasões são cada vez mais frequentes e toleradas.

O fato é que as incertezas que hoje assombram o País têm também sua origem nas omissões e desmandos de um governo populista que há mais de dez anos entrega muito menos do que promete. E promove, com os hábitos perniciosos cultivados por setores do PT, a lassidão moral que ameaça as instituições.

(NA COLUNA DE DORA KRAMER):

Calma no Brasil. O País está violento, intolerante, raivoso, necessitando urgentemente de um poder moderador/pacificador, cuja tarefa se inicia pela retomada de valores como legalidade, compromisso com a verdade, probidade, civilidade e respeito ao contraditório.

Caminho da roça

POR Dora Kramer - O Estado de S.Paulo

Falta um mês para a convenção do PMDB, marcada para 10 de junho. Se nas próximas quatro semanas a presidente Dilma Rousseff e o vice-presidente Michel Temer não conseguirem dar um jeito na situação, a derrota da renovação da aliança com o PT é dada como certa. 

Não é coisa que se fale em voz alta no partido onde o clima é de conspiração contra. Das 27 seções regionais só reina a paz em colégios eleitorais de pouco peso, como Alagoas, Maranhão, Rondônia e Amapá. Nos demais há problema, variando apenas a gravidade.

Se a votação fosse hoje, a única dúvida seria se a rejeição seria feita de modo aberto, por aclamação dos representantes dos diretórios regionais, ou se o resultado se expressaria na urna, sob a proteção do voto secreto dos delegados.

Michel Temer tem ciência da perda de apoio crescente da renovação da aliança, certamente divide essa preocupação com o governo e trabalha para que o previsto resultado adverso não se confirme. Há chance? Sempre há, mas são pequenas, porque PT e PMDB não conseguiram se entender nas eleições estaduais e a queda da presidente das pesquisas contribuiu para que a dissidência caminhe para se transformar em maioria.

Junto a isso, há a percepção dos políticos junto às suas bases de que existe um cansaço generalizado com o governo. Não necessariamente com a presidente em particular, mas um ambiente de desagrado com o PT em geral. Ainda assim, há uma avaliação de que, se algumas questões regionais importantes fossem resolvidas, o PMDB poderia continuar na coligação mesmo só formalmente.

Para o governo já seria bom: não perderia cerca de cinco minutos do tempo no horário eleitoral nem teria o desgaste de uma sinalização politicamente muito ruim. Quais seriam as questões regionais capazes de salvar a parceria? Ceará e Rio de Janeiro. Operações difíceis, pois o que o PMDB quer é que no Ceará Dilma abandone os irmãos Ciro e Cid Gomes para apoiar o senador Eunício Oliveira e no Rio retire a candidatura de Lindbergh Farias em favor do governador Luiz Fernando Pezão.

Tal cenário de dificuldades seria inimaginável há um ou dois meses. Não obstante a insatisfação crescente no principal parceiro do governo, que em março explodiu numa crise abafada embora não dizimada no Congresso, mesmo os mais rebeldes não vislumbram a possibilidade de o partido se recusar a renovar a aliança.

No máximo consideravam que o PMDB iria formalmente para a coligação e, na prática, cada seção regional agiria como bem entendesse, apoiando a candidatura Dilma, aliando-se implícita ou explicitamente à oposição ou simplesmente se omitindo quanto à eleição presidencial. Cada Estado cuidaria de suas próprias candidaturas aos governos, ao Senado e à Câmara, a fim de que o PMDB preservasse a força oriunda do poder local, com reflexo direto na cena nacional por meio da influência no Congresso.

Hoje a percepção é a de que o compromisso da aliança teria tudo para favorecer o PT sem render benefícios ao PMDB.

Histórico. Caso venha a romper aliança com Dilma, não seria a primeira vez que o PMDB participaria de um governo sem integrar a coligação eleitoral. Em 1998, o partido ocupava ministérios no governo Fernando Henrique Cardoso e, ainda assim, decidiu por não apoiar formalmente a reeleição. Nem por isso FH perdeu.

O acirramento de ânimos pode ser eficaz na luta política, mas acaba contaminando a sociedade quando a dinâmica do conflito e do vale-tudo sem regras nem limites é incorporada como prática cotidiana no exercício do poder.

Assassinos!

  • POR Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
     

Os deuses têm sede de sangue e dirigem a multidão, como enuncia Elias Canetti, rumo à horda de caça ou de fuga. Os gestos da matilha humana reiteram milênios de preconceitos, calúnias contra minorias, genocídios programados por dirigentes religiosos ou políticos. O assassinato de Fabiane Maria de Jesus, acusada de magia negra e uso de crianças em rituais satânicos, repete a brutalidade do "homem, lobo do homem". 

Vejamos os antecedentes históricos daquela tragédia, examinemos o sacrifício ritual de crianças. O fato é antigo como a sociedade humana: destruir, oferecer, consagrar são os elementos do sacrifício que, segundo o clássico antropólogo Marcel Mauss, tende a verter o sangue da vítima voluntária ou designada "para dar um sentido à coletividade e a transformar num todo comunitário" (Marie-France Rouart). Não existe ordem humana sem a tremenda sombra da morte inocente, mostra René Girard (A violência e o sagrado). Quando a Igreja era jovem, os escritores pagãos viam na missa uma celebração do sacrifício humano. As frases da fé (Hoc est corpus meum, Hic est enim calix sanguinis mei), ao afirmar a real presença de Cristo, suscitaram iras, criaram boatos sobre a comunidade (Wilken R. L., The Christians as the Romans Saw Them). Os advogados da Igreja, entre eles Tertuliano, rebateram as acusações de canibalismo infantil asseverando que a prática pertencia, de fato, aos pagãos. "Para melhor refutar tais calúnias, mostrarei que sois vós que cometeis aqueles crimes, publicamente ou em segredo. Talvez seja por semelhante motivo que os atribuís a nós" (Ad Nationes).

Tácito ataca cristãos e judeus no mesmo átimo, afirmando que os segundos teriam criado o costume de sacrificar infantes. Tito Lívio aproxima os sacrifícios cristãos das bacanais. Mas todos eles partem de um recurso depois recusado pela historiografia: escreveram "por ouvir dizer"(audivimus). Desgraçadamente, aquele modo de informação - o mais baixo de todos, segundo Spinoza - ainda presta serviços à infâmia das massas e de seus líderes. Ele foi usado na modernidade contra bruxas e judeus. Alguns escritores do século 19 chegaram ao máximo descompromisso com a verdade ao asseverar: "O que se adora no gueto não é o Deus de Moisés, é o horrível Moloch fenício para o qual é preciso vítimas humanas, crianças e virgens" (Drumont, Édouard: La France Juive, 1886).

Judeus e ciganos foram as maiores vítimas (com as mulheres acusadas de bruxaria) da massa delirante. No século das Luzes, Voltaire defendeu Calas, um pai acusado de assassinar o próprio filho por motivos religiosos. A boataria causou o esquartejamento do genitor sem culpa. Temos aí as ondas malditas do ódio recíproco entre católicos e protestantes. Houve muito boato sobre canibalismo na Guerra dos 30 Anos, a partir de casos isolados.

A propaganda adquire forma assassina quando massas são por ela preparadas para o massacre do "inimigo", inferior e criminoso por definição. Os nazistas semearam em sólo fértil. Mas os preconceitos receberam sanção positiva de intelectuais sectários. Mesmo Jean Bodin redigiu um tratado terrível intitulado A demonomania dos feiticeiros que ajudou a adubar o terreno do fanatismo. Muito instrutivo, a propósito, o livro recente que traz os trabalhos de um seminário sobre o tema: Os textos judeofóbicos e judeófilos na Europa Cristã da modernidade, dirigido por Daniel Tollet. Ali é clara a presença do antissemitismo cristão, com acusações de sacrifício ritual dirigidas aos judeus, algo retomado mesmo no século 19. Quem tiver estômago, leia a Bula Cum nimis absurdum, do papa Paulo 4 (14/7/1555). Os judeus seriam arrogantes criminosos que mereceriam a prisão no gueto, "sem direito de propriedade sobre sua própria casa, obrigados a usar um signo distintivo de cor amarela, sem trato comercial com os cristãos, proibidos de exercer profissões liberais" (Charles Molette). Não por acaso, a Bula foi invocada em 1942 para justificar as medidas policiais antissemitas da República de Vichy, no Bulletin Religieux de l'Archidiocèse de Rouen (25 de agosto de 1942). O bulletin, é verdade, foi proibido pelo arcebispo Pierre Petit, mesmo sob ameaças dos alemães. Mas ele era redigido por acadêmicos e clérigos ligados à massa "piedosa". Tais coisas entram no mesmo clima do boato maldito cujo nome é Os Protocolos dos Sábios de Sião.

Após a guerra doutrinária do caso Dreyfus, quando um inocente foi punido para salvar a razão estatal francesa, tivemos muitos outros exemplos de atitudes coletivas hediondas. Nem sempre o linchamento se justificou pelo sacrifício físico de crianças ou virgens. Ele serviu, nos embates sobre a pedofilia, para encobrir as piores injustiças e crueldades. Acaba de falecer um proprietário da Escola de Base, após as agressões mais brutais da massa ensandecida, da imprensa e mesmo de setores policiais e políticos. Ainda seguindo Spinoza: estamos longe da situação social em que os que pagam imposto assumem a si mesmos como "povo" e não como "vulgo". Boa parte de tal inferioridade se deve aos vampiros políticos, nutridos de populismo, corrupção, truculência, arrogância. A lentidão e a distância que mantêm a Justiça longe da vida civil ajudam poderosamente a fábrica de linchamentos em nosso país. Sem juízes que realmente decidam em tempo certo, com base na lei, fica a tentação do justiçamento e da barbárie.

O horror nazista recomeça no mundo e no Brasil. O antissemitismo, sua fonte maior, tem novos ensaios nos massacres cometidos por "justiceiros" movidos por alguns jornalistas, blogueiros e redes sociais. No jornal Zero Hora, de Porto Alegre, matéria gravíssima denuncia: Ameaça do neonazismo persiste no Rio Grande do Sul (2/5/2014). Quem lincha incentivado por rumores e com fundamento no preconceito pode perfeitamente aplaudir o massacre de milhões. Profético Rimbaud: "Eis o tempo dos assassinos".

*Professor da Universidade Estadual de Campinas, é autor de "O Caldeirão de Medeia" (perspectiva) 

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Fonte:
O Estado de S. Paulo

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