Um ode à civilização contra o grito dos ressentidos, por Rodrigo Constantino

Publicado em 06/03/2014 15:37 e atualizado em 06/03/2014 16:12
Artigos de Rodrigo Constantino e Felipe Moura Brasil, colunistas do site da Veja.

No filme “A menina que roubava livros”, há uma cena em que a personagem principal começa a recitar trechos de literatura, no caso um livro de H.G. Wells, em um abrigo em meio a um bombardeio aéreo durante a Segunda Guerra. A cena retrata bem o esforço individual de se preservar a beleza, a cultura e a própria civilização quando tudo em volta parece ruir. A própria beleza da menina já era um obstáculo a toda a feiura que os bárbaros nazistas espalhavam pelo mundo.

Uma cena semelhante se passa em “Titanic”, quando um quarteto segue tocando música clássica mesmo com o navio já afundando. É verdade que, aqui, a desgraça que se abateu sobre eles foi natural, causada por um iceberg, e não por seres humanos bárbaros. Mas a plasticidade da cena continua tocante: mesmo quando a morte certa está à espreita, há aqueles que conseguem manter vivo o último suspiro de civilização.

Esse é o tema de Our Culture, What’s Left of It, de Theodore Dalrymple: uma ode à civilização, uma tentativa de preservar a cultura em meio às ruínas, ainda que seja um esforço individual fadado ao fracasso. No livro, Dalrymple nos conta uma história bem similar a esta acima: um grupo de amigos realmente teria continuado a tocar música clássica, quartetos de Beethoven, mesmo quando os nazistas da Gestapo efetuavam prisões e eles poderiam ser os próximos alvos. Esse tipo de coisa ocorre na vida real.

Outro exemplo foi Myra Hess tocando Mozart na Galeria Nacional de Londres durante bombardeios nazistas. O ato era repleto de simbolismo, já que Hesse era judia e tocava um compositor austríaco, da mesma nacionalidade de Hitler, o autor dos bombardeios. Era a força do que há de melhor na civilização combatendo a barbárie, um jeito de desafiar os brutos.

O médico britânico, em vários ensaios, mostra como a civilização vem sendo atacada há décadas por gente que deliberadamente deseja destruir em vez de criar. É o grito dos ressentidos, que abominam o que há de mais belo no mundo. Após a tragédia da Segunda Guerra, Theodor Adorno chegou a declarar a morte da arte: não seria mais possível fazer poesia depois do Holocausto. Mas essa desistência seria fatal, seria a derrota final da civilização pela barbárie.

Várias obras magníficas foram criadas justamente em épocas de terror, de guerras, de desgraças. Vermeer, por exemplo, viveu durante a Guerra dos Trinta Anos, que dizimou boa parte da população alemã e instaurou o caos social na região, mas isso não o impediu de pintar lindos quadros, capturando momentos sublimes do cotidiano, como em “The Milkmade”, onde um simples derramar de leite se torna eternamente belo por seus pincéis.

Se Adorno tivesse decretado o final do prazer sexual ou da boa culinária, não seria levado tão a sério. Mas ao decretar a morte da arte, muitos aceitaram passivamente, pensando que a arte não é necessariamente o campo do belo. Estava inaugurada a época em que a arte seria o campo da feiura, do ataque ao belo, do “vale tudo”. Miró chegou a declarar abertamente que sua intenção era “assassinar a pintura”, rebelar-se contra todas as convenções.

Os revolucionários acreditam que nenhum tributo precisa ser prestado ao passado, aos gênios que nos antecederam, que ajudaram a criar aquilo que chamamos cultura. Podem fazer tabula rasa da civilização e começar do zero. Lenin, ícone desse senso de destruição, chegou a se negar os prazeres de escutar Beethoven porque isso o reconciliava com o mundo, uma fraqueza terrível em alguém que desejava bater com força no mundo todo, que acreditava no poder liberador da violência.

Os artistas pós-modernos passaram a ver a transgressão como desejável por si mesma. Quebrar tabus era louvável, independentemente de qual tabu fosse o alvo, de sua importância ou não para o mundo (o incesto, por exemplo, é um tabu). Oscar Wilde certa vez disse que não há algo como um livro imoral, e sim livros bem ou mal escritos. Se Hitler tivesse uma habilidade maior como escritor, devemos supor que Mein Kampf não seria imoral então?

Se quebrar tabus passa a ser o maior mérito da arte, então logo toda quebra de tabu se torna arte. Além disso, por que o privilégio de somente artistas poderem quebrar tabus em obras de “arte”? O tabu existe para todos, e logo muitos pensarão que também têm direito de ignorar os tabus não apenas simbolicamente, mas na realidade. Artistas são, para o bem e para o mal, formadores de opinião.

O niilismo estético é uma forma de destruição da civilização. Os artistas pós-modernos acreditam que não há padrão algum que não deva ser violado, o que em si se torna o novo padrão “artístico”. Como dizia Ortega y Gasset, esse é o começo da barbárie. Duchamp com seu penico, Damien Hirst com seus pedaços de animais em formol, quanto mais “ousado” contra tudo aquilo tradicional, melhor. A virtude está em chocar.

O homem autêntico moderno é aquele que rejeita todas as convenções sociais, que não encontra restrição alguma a seus apetites, ao livre exercício de suas vontades. Isso se aplica tanto à estética como à moral. É o relativismo como nova convenção social: só aquele que cospe em tudo que existe tem valor.

Uma combinação venenosa entre o pedantismo intelectual dos artistas esnobes e a admiração por tudo aquilo que é popular, como se a voz das massas fosse a voz de Deus, gerou um quadro de desprezo a toda arte nobre, vista como elitista e preconceituosa. A sua destruição deliberada é o tributo que os “intelectuais” prestam não exatamente ao proletário, mas àquilo que eles julgam ser o proletário. Precisam provar a pureza de seu sentimento ideológico com a estupidez de sua produção “artística”.

Nesse ambiente mental, os artistas são levados a produzir aquilo que é visualmente revoltante, chocante, para estar em sintonia com o mundo violento, injusto. Sem isso, o artista não consegue provar sua boa fé ideológica, teme ser visto como elitista, preconceituoso, reacionário. Tudo aquilo que é convencionalmente belo deve ser atacado, destruído.

Civilização, segundo Dalrymple, é a soma total daquelas atividades que permitem ao homem transcender a mera existência biológica e alcançar uma vida espiritual, mental, estética e material mais elevada. Restringir instintos básicos e apetites é fundamental nessa empreitada civilizatória. Fracassar nisso é liberar a besta dentro de nós, o que nos torna pior do que os animais, pois temos a capacidade de agir diferente, de forma mais refinada, civilizada.

A paixão pela destruição pode se alimentar de si mesma, em vez de ser também construtora, como acreditava o anarquista russo Bakunin. Uma vez que as forças destrutivas são liberadas, elas podem se tornar autônomas, sem propósito algum além da própria destruição. Destruir por destruir, algo que acaba arrastando uma legião de ressentidos. É um grito de angústia e desespero daqueles incapazes de apreciar o que existe de melhor no mundo.

Alguns dão vazão a este sentimento poderoso com máscaras no rosto e pedras nas mãos, outros com pincéis e canetas. A ignorância se revolta contra o conhecimento. O feio contra o belo. O inferior contra tudo aquilo que enxerga como superior, mais elevado. O próprio conceito de civilização precisa ser destruído ou relativizado: quem somos nós para saber o que é civilizado ou bárbaro? Civilização existe tanto quanto o monstro de Loch Ness ou o abominável Homem das Neves; um mito no qual apenas os ingênuos acreditam.

Ao mesmo tempo, todas as conquistas da civilização são tomadas como dadas, garantidas, como se sempre tivessem existido, e como se não corressem o menor risco de desaparecer. Nada precisa, então, ser preservado com nosso esforço, porque tudo vem de graça como um presente da Natureza. Infelizmente, parafraseando Burke, tudo que é necessário para o triunfo da barbárie é que os homens civilizados nada façam.

Vivemos, hoje, uma situação pior: os homens civilizados, em vez de nada fazer, têm ativamente colaborado com a destruição dos valores civilizados. Eles têm negado qualquer distinção entre o melhor e o pior, quase sempre preferindo o último. Eles têm rejeitado as grandes conquistas culturais em troca de diversões efêmeras e puro entretenimento vulgar. Eles têm tratado com estima qualquer sinal de comportamento depravado. Eles têm colaborado com o avanço da barbárie e a destruição da civilização. E vale lembrar que Roma não foi destruída em um só dia; foi obra de contínuos ataques, tanto de fora como de dentro.

As distopias de Huxley e Orwell e a importância do passado

“Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo.” (George Santayana)

As duas mais famosas distopias do século 20 foram escritas por britânicos. Uma por Aldous Huxley e a outra por George Orwell. Outro britânico, o médico Theodore Dalrymple, faz uma análise interessante delas em seu livro Our Culture, What’s Left of It, levantando a hipótese de que o declínio do poderio britânico no mundo pode ter sido uma época propícia a esse tipo de pessimismo com o futuro.

O livro Admirável Mundo Novo, de Huxley, foi publicado em 1932, e 1984, de Orwell, foi publicado em 1949. Quando as esperanças são irrealistas, os medos se tornam exagerados. Quando os sonhos sozinhos ditam os rumos dos acontecimentos, o resultado costuma ser um pesadelo. O otimismo ao término do século 19, após longa era de prosperidade liberal, chegou a patamares de utopia. A realidade iria decepcionar quase todo mundo.

Tanto Huxley como Orwell iriam imaginar um futuro sombrio para a humanidade, extrapolando tendências daqueles tempos, com uma capacidade profética muitas vezes impressionante. Huxley, por exemplo, foi capaz de desenhar um mundo futurístico onde crianças eram erotizadas cada vez mais cedo, a família tradicional era uma bizarrice, e para toda angústia havia o soma, uma espécie de Prozac que ajudava a driblar os sentimentos.

Pessoas egoístas vivendo pelo prazer do momento e nada mais, assim era o futuro imaginado por Huxley. E quem poderia dizer que ele errou feio? A solidão não mais existiria, para que ninguém tivesse reflexões introspectivas muito profundas e angustiantes (parece o mundo do Facebook?). O resultado era uma legião de seres infantilizados: os desejos aos 64 eram os mesmos que aos 17 anos. Não vemos isso nos “adultescentes” de hoje?

No caso de Orwell, o “Big Brother” que ele descreve é o retrato perfeito de regimes totalitários que espionam até os pensamentos das pessoas, até as conversas que ocorrem dentro de suas casas. Esse tipo de regime não é mais a regra após a queda do comunismo, sobrevivendo apenas em Cuba e na Coreia do Norte.

Mas como negar que a intromissão estatal em nossas vidas chegou ao absurdo, mesmo em democracias como a inglesa, recordista de câmeras de vigilância da população? Como não comparar o eufemismo do politicamente correto moderno com o duplipensar orwelliano? Como ignorar a tentativa de rescrever o passado para controlar o futuro, tão presente em iniciativas como a “Comissão da Verdade” petista?

O principal elo entre ambas as distopias, segundo Dalrymple, seria a mensagem de como é fundamental preservar um senso de história e tradições culturais para que nossas vidas sejam suportáveis. O tema é ainda mais poderoso quando lembramos que Huxley e Orwell eram radicais, diziam-se socialistas, e desafiavam o status quo.

Nada disso os impediu de perceber que, para mudar de forma positiva, preservar certas coisas e valores também era fundamental. Ambos viram como o passado era importante para o presente e o futuro, em uma época em que muitos desejavam fazer tabula rasa de todo o estoque de conhecimento dos antepassados e criar um “novo mundo” do zero.

O “selvagem” de Huxley, não custa lembrar, tinha lido várias obras de Shakespeare, e foi isso que manteve nele um antídoto contra o “racionalismo” pseudo-científico de Mustapha Mond, um dos controladores do “admirável mundo novo”. Já em 1984, o herói Winston acorda um dia com uma única palavra em sua mente: Shakespeare.

Coincidência? Ou será que ambos os autores foram capazes de compreender a importância do passado, da cultura, da literatura, das emoções, do aprendizado acerca da natureza humana? Sempre que algum revolucionário tentar vender uma ideia fantástica de algum “mundo melhor” possível, de um “novo homem”, de uma sociedade parida da tabula rasa somente com base na “ciência” e na “razão”, seria bom o leitor lembrar dessas distopias e responder: Shakespeare!

Viva o passado, a cultura e as tradições, fundamentais para a continua construção de um futuro realmente melhor, ainda que sempre imperfeito e sob pilares frágeis, pois frágil é a civilização criada a partir da natureza humana.

A necessidade de controlar os apetites na era do sentimentalismo

“A sociedade não pode existir, a menos que um poder que controle a vontade e o apetite seja colocado em algum lugar, e quanto menos exista interiormente, mais dele existirá exteriormente. Está ordenado na constituição eterna das coisas, que homens de mentes intemperantes não podem ser livres. Suas paixões forjam seus próprios grilhões.” – Edmund Burke

Passei o carnaval na ilustre “companhia” de Theodore Dalrymple, médico britânico cujo bom senso muito admiro. Em Our Culture, What’s Left of It, ele disseca a destruição de valores importantes para a cultura britânica, e por tabela, também para a cultura ocidental. Um dos sintomas por ele apontados é o excesso de sentimentalismo na atualidade, quando as pessoas confundem liberdade com deixar todas as suas emoções tomarem conta de suas ações, sem nenhum tipo de freio.

Dalrymple cita como exemplo a celeuma com a morte da princesa Diana, o sensacionalismo que tomou conta da imprensa, e a pressão popular para que a rainha expressasse publicamente algum sofrimento mais forte. Logo a família real, conhecida por não demonstrar em público fortes emoções, por ser contida, discreta e reservada. Como resume Dalrymple, os britânicos modernos imaginam que a resposta para a constipação é a diarreia. De um extremo ao outro, não há lugar para nenhum meio termo.

Em seguida, Dalrymple visita Shakespeare, em especial Macbeth, para nos lembrar da importância dos freios aos apetites humanos. O bardo nos esfrega na cara a realidade de que não existem consertos técnicos para a humanidade, algum tipo de panaceia capaz de nos livrar de nosso “pecado original”, de nossa natureza humana suscetível às paixões (no caso de Macbeth, a ambição).

O mal, em outras palavras, estará sempre à espreita, dentro de nós, pronto para ser despertado quando a vigília cai em sonolência. A linha divisória nem sempre é clara, e Shakespeare argumenta que todos nós somos, em potencial, agentes do mal, pois ele habita nossos corações. Praticar o bem não seria tanto uma questão de conhecimento, como pensava Platão, e sim de escolha moral, de um contínuo exercício de controlar nossos apetites mais básicos e “instintivos”.

O que Shakespeare destrói, portanto, é a utopia de que bastam novos arranjos sociais para eliminar o mal do mundo. O conceito de “pecado original” seria antagônico a esta visão otimista e ingênua. A tentação do mal será parte de nossas vidas como seres humanos imperfeitos. A busca da perfeição por meio da manipulação do ambiente estará sempre fadada ao fracasso, a despeito do que pensam os “engenheiros sociais”.

O autocontrole e o limite de nossos apetites são fundamentais nessa batalha eterna contra o mal, e dependem, em última instância, de cada indivíduo. Claro que as características do ambiente podem influenciar, ajudar ou atrapalhar esta luta contínua, mas não determinam seu resultado.

A lição, segundo Dalrymple, é que fortes emoções ou desejos, por mais que virtuosos em certas ocasiões, podem ser usados para maus propósitos se escaparem do controle ético. Shakespeare não era um defensor da ideia do bom selvagem que dá vazão às suas emoções e seus instintos apenas. Ao contrário: ele temia essa besta presente nos homens.

Em outras palavras, as restrições às nossas inclinações naturais, que se deixadas livres e soltas não levam automaticamente à prática do bem e com frequência nos levam à prática do mal, são uma condição necessária e indispensável para a existência civilizada da humanidade.

Pela ótica de Dalrymple, Shakespeare estaria entre os totalitários utópicos e os libertários fundamentalistas. Ele não nos oferecia resposta fácil para o dilema humano. Sua resposta não era nem a repressão severa e draconiana, nem a total leniência e permissividade, extremos defendidos por aqueles que caem na tentação de argumentar com princípios absolutos válidos inquestionável e invariavelmente. Há que se buscar uma proporção entre ambos, o que nos torna humanos.

A má-nutrição cultural

Adoro o feriado de Carnaval. Não por causa do Carnaval em si, que, confesso, não tenho muita paciência para acompanhar. Mas sim pelo feriado, que me dá mais tempo para leitura. Neste ano escolhi a companhia de Theodore Dalrymple, médico britânico cuja forma de pensar aprecio bastante. O livro: Our Culture, What’s Left of It, uma coletânea de ensaios sobre a decadência moral da Inglaterra moderna.

O segundo ensaio, tema desse artigo, fala sobre a má-nutrição dos ingleses, problema que afeta de maneira desproporcional os mais pobres. A tendência, principalmente da esquerda, é acusar a pobreza em si, como se os ingleses de classe média baixa não tivessem acesso, em pleno século 21, a alimentos saudáveis por conta do preço. Erram o alvo.

Como Dalrymple argumenta, trata-se de um problema cultural. A ruptura da estrutura familiar, enaltecida pela elite mas mais comum nas classes baixas, afeta drasticamente os hábitos alimentares dessas pessoas. Muitas mães não consideram mais seu dever alimentar corretamente seus filhos até chegarem a uma idade adulta em que possam assumir esta responsabilidade. À medida que alcancem a geladeira ou a despensa, estão “livres” para se alimentar por conta própria, como desejarem.

Uma das coisas mais raras de se encontrar atualmente em certas comunidades é uma família que ainda preserve o costume de todos desfrutarem de ao menos uma refeição diária em conjunto. Mais comum é cada um por si, e a mulher, muitas vezes com namorados ou maridos que não são os pais biológicos de seus filhos, pressionada para cozinhar para eles na hora que for, sem nenhum tipo de horário fixo. Os filhos acabam prejudicados e tendo de se virar com comidas pré-cozidas ou enlatados, biscoitos e “junk food”.

As elites, mais preocupadas com as aparências de almas abnegadas perante seus pares, não têm a coragem de apontar como verdadeiro culpado aquele que faz escolhas ruins. É preferível encontrar bodes expiatórios, tais como as cadeias de supermercado, as lojas de “junk food” ou o capitalismo, que, sedento por lucro, empurra goela abaixo dessa gente porcaria (como se o ato de abrir a boca e mastigar não fosse voluntário).

É mais fácil e cômodo culpar abstrações impessoais do que indivíduos de carne e osso, especialmente se forem mais pobres. Não é politicamente correto apontar o dedo para essas pessoas, sendo preferível condenar forças além de seu controle. Os modelos de engenharia social surgem, então, como esquemas utópicos para se evitar a realidade.

Os “desertos de comida” aparecem em cena como culpados pela situação; os mais pobres seriam reféns de alimentos pré-cozidos e processados, com excesso de gordura e sal por todo lado. Como contrapartida, não possuem a oportunidade de escolher alimentos mais saudáveis. O capitalismo, naturalmente, é o grande culpado por isso tudo.

A solução: criar órgãos burocráticos de controle estatal, para inspecionar os alimentos e impor um padrão mais saudável. A miséria de uns é a oportunidade de trabalho para outros, e os burocratas se agarram a esta oportunidade com afinco. O pobre pode ser uma mina de ouro para alguns.

Como coloca Dalrymple, se os “desertos de comida” realmente existem, em uma época de transporte mais barato e abundância de mercados para todos os bolsos e gostos, eles se devem à demanda, não a algum maquiavelismo por parte da oferta. E a demanda é um fenômeno cultural.

A “intelligentsia” esquerdista, porém, evita constatar isso como o diabo evita a cruz. Fazê-lo, afinal, seria reconhecer que as mudanças culturais, estimuladas pela própria “intelligentsia” ao longo das últimas décadas, foram cúmplices do problema atual. Em plena era de abundância, o mundo desenvolvido enfrenta o grave problema de má-nutrição. Como pode? Ora, é tudo culpa dos supermercados capitalistas!

As mudanças nos costumes e nas morais que a esquerda vem promovendo desde 1960 não podem ter ligação alguma com o problema. Admitir isso seria doloroso demais para essas elites. Tampouco essas elites vão desejar o fardo de ter que responsabilizar os mais pobres por suas péssimas escolhas, por suas famílias desestruturadas, por seus hábitos pouco saudáveis.

Não pega nada bem no meio refinado dos “ungidos”, que precisam ver os pobres sempre como vítimas do “sistema”, para que possam posar de seus salvadores. Não importa que, agindo assim, essas elites estejam chamando os pobres de autômatos, de seres robotizados incapazes de fazer escolhas melhores, o que os colocaria como inferiores aos demais da espécie humana.

Condenar os supermercados é melhor, pois ainda destaca a importância do papel dessas elites. Aumenta a demanda por mais intervenção dos burocratas na sociedade, delega aos “engenheiros sociais” um poder ainda maior para controlar tudo de cima para baixo.

É assim que, segundo Dalrymple, a questão da má-nutrição segue escalando em uma época com comida disponível em abundância para todos os bolsos. Um casamento nefasto entre elite arrogante e autoritária e pessoas que se recusam a assumir as rédeas das próprias vidas. Trata-se, acima de tudo, de uma má-nutrição cultural.

Tudo pela narrativa

Prezado leitor, espero encontrá-lo antes da quinta cerveja neste feriado carnavalesco. O tema é importante e preciso de sua atenção. Depois da leitura você pode voltar a focar nos desfiles. Talvez até precise, para relaxar um pouco…

O que tenho a dizer de tão sério? Não, eu não pretendo falar da conjuntura, do crescimento medíocre, da inflação alta, do risco de o PT transformar o Brasil em uma nova Venezuela, ou algo do tipo. Seria depressivo demais para a ocasião. Vou falar de algo mais estrutural, de uma tendência mundial que vem destruindo importantes valores ocidentais nas últimas décadas.

Falo da vitimização das “minorias”, que atende aos interesses de grupos organizados e atenta contra a justiça. Tudo que acontece deve passar pelo filtro ideológico dessa turma, para que possa pintar o homem branco judeu ou cristão como o maior vilão que a humanidade já teve.

Depois da Guerra Fria

Resgato mais um texto antigo que trata, ainda que en passant, dos acontecimentos no leste europeu de hoje. Comparo três análises distintas sobre o significado do fim da Guerra Fria: Fukuyama, Golitsyn e Huntington. Do otimista ao mais pessimista, passando pelo “conspiratório”. Muitos foram os que celebraram o fim da Guerra Fria como o fim da ameaça comunista ou soviética. Talvez tenham se precipitado…

Depois da Guerra Fria

“O jeito mais rápido de acabar com uma guerra é perdê-la.” (George Orwell)

Com o término da Guerra Fria, automaticamente concluiu-se que o próprio comunismo chegara ao fim também. Diversos experts em geopolítica publicaram suas teses para o que iria acontecer no mundo daquele momento em diante. Este texto visa basicamente a forçar uma reflexão sobre os possíveis caminhos adotados no quadro geopolítico mundial, de profundo impacto na vida de todos. Serão abordadas três visões de forma bem resumida, servindo portanto apenas para um início de debate sobre tema tão complexo. Como cada visão representa uma hipótese diferente, teremos assim um amplo desenho das possibilidades para o que está ocorrendo de fato no mundo atual.

O primeiro caso foi defendido por Francis Fukuyama, que desenvolveu sua teoria no otimista O Último Homem e o Fim da História, um livro que mereceu boa atenção no mundo todo. De forma resumida, o autor acreditava que o Ocidente vencera, e que seu modelo seria adotado pelas antigas nações comunistas. A democracia, a sociedade aberta, o capitalismo, enfim, todo exemplo de sucesso seria replicado pelos perdedores da guerra. Do lado desta visão está a seleção natural, a capacidade humana de aprendizado. Podemos de fato supor que no longo prazo o melhor irá prevalecer. Mas contrário a Fukuyama encontra-se a briga pelo poder, o fato de que os poderosos não costumam capitular tão facilmente. Sua visão acaba parecendo um tanto ingênua.

O segundo caso foi defendido por um ex-espião da KGB, Anatoly Golitsyn, que fugiu para o Ocidente. Suas teorias, com forte embasamento e conhecimento de dentro, chegaram a ser entregues para a CIA em forma de memorando, objetivando alertar o mundo para a suposta verdade por trás das mudanças nos países comunistas. Em New Lies for Old e The Perestroika Deception, o autor defendeu a hipótese de que a “revolução” ocorrida nesses países foi uma farsa, não se deu de baixo pra cima, mas sim foi planejada pelos próprios estrategistas comunistas. Golitsyn fez diversas previsões com sua tese e conhecimento, e de fato acertou inúmeras, como a queda do muro de Berlim, por exemplo.

Antecipando o fracasso do modelo socialista no estilo repressivo de Stalin, a nomenklatura teria que se adaptar, conforme o ensinado por Lênin. Este chegou a adotar sua NEP (Nova Política Econômica) em 1921, que era uma enorme concessão ao capitalismo no âmbito econômico, mas que visava na prática fortalecer o comunismo. Os líderes comunistas estariam então forçando certas mudanças, enganando o Ocidente para alcançarem o objetivo final, a vitória comunista. Isso seria possível através de uma convergência aparente de modelos, possibilitada pela ingenuidade e ignorância do Ocidente frente à estratégia comunista, no “melhor” estilo Sun Tzu. Os avanços capitalistas em uma Rússia e China, então, não seriam vitórias genuínas do capitalismo, mas adaptações controladas para fortalecer uma ideologia ainda existente, de luta de classes, que pretende na essência a destruição do capitalismo.

Do lado de Golitsyn estão diversos fatos históricos previstos pelo autor, medidas obscuras adotadas por líderes socialistas e declarações dos próprios comunistas no poder. O simples fato do atual presidente russo ser um ex-KGB, e ter adotado medidas que concentram assustadoramente o poder, levanta um sério alerta. Seria como o presidente da Alemanha pós-Hitler ser um renomado membro da Gestapo ou SS. Algo que pode, entretanto, suscitar certa desconfiança quanto ao quadro pessimista pintado pelo autor é o fato dele ser ex-comunista de carteirinha. É da natureza humana valorizar aquilo que conhecemos melhor, ver o mundo sempre por esta ótica. Reconhecer o fim do comunismo seria como sucatear toda uma vida de estudos, lançar no lixo sua grande vantagem comparativa, sua expertise sobre o tema. Para um homem com apenas um martelo, tudo lhe parece um prego. É o risco da visão estreita, enviesada, pelo fato de querermos, mesmo que inconscientemente, ver o mundo pelo prisma que melhor entendemos. Mas isso não reduz a seriedade a qual devemos analisar as teorias de Golitsyn, que são profundamente embasadas.

Por fim, temos a teoria de Samuel Huntington, expressa no seu livro Choque de Civilizações. O comunismo seria o elo comum entre diversos grupos heterogêneos, unidos somente por esta causa ideológica maior. Uma vez que a cortina de ferro cai e torna aparente os pilares de areia do modelo, perde-se o denominador comum entre esses grupos. Assim, as antigas diferenças, ocultadas pela luta comum anterior, surgem novamente com força intensa. Numa analogia futebolística, do jeito que Lula gosta, seria como torcedores dos rivais Flamengo e Vasco que se uniram para defender o Brasil, mas que quando retornam à realidade local, partem uns para cima dos outros. Com tal tese, Huntington antecipou os problemas no Kosovo, imaginando corretamente que os fatores civilizacionais iriam balançar a região, uma vez que sérvios e croatas não estariam mais sob o mesmo manto comunista.

Qual dessas visões está correta, ou mais perto da verdade? Difícil dizer. Talvez não precise ser apenas uma das três a verdadeira. A geopolítica mundial é absurdamente complexa, tal como a natureza humana. A luta pragmática por poder, a lavagem cerebral ideológica, a força dos mercados, talvez tudo isso exerça influência, sem uma forte predominância. Provavelmente existe uma parcela de verdade na visão de Fukuyama, principalmente se considerarmos o longo prazo, imaginando que as forças naturais do melhor modelo irão prevalecer, moldar o mundo.

Afinal, mesmo que ainda bastante deficiente, a democracia conquistou o globo. Mas como ignorar os alertas de Golitsyn, sabendo que a ideologia comunista virou religião dogmática, dominando completamente a razão em muitos adeptos? Como abandonar suas teorias se vemos um mundo cada vez mais dominado por modelos híbridos, onde o poder acaba concentrado no governo? E como não dar valor aos argumentos de Huntington quando observamos o que ocorre no mundo islâmico, uma jihad defendendo explicitamente o choque de civilizações, para aniquilar o Ocidente capitalista?

Independentemente de qual desses autores chegou mais próximo da verdade, a conclusão que me parece mais óbiva é que os defensores da liberdade, do capitalismo, da sociedade aberta, nunca poderão descansar. As forças e os interesses contrários a esta liberdade são vastos. Grupos sempre irão se organizar para tentar conquistar o poder, escravizar a humanidade, controlar as vidas e riquezas alheias. Comunistas, fascistas, islâmicos fundamentalistas, social-democratas (apenas uma cor vermelha um pouco desbotada), todos esses que visam a destruição do único modelo que possibilita a liberdade individual, precisam ser combatidos. E essa guerra será eterna. Afinal, o único jeito de acabar com ela rapidamente, é perdendo. Isso significaria a morte da liberdade.

O que é flerte? Em tempos de carnaval, aprenda a flertar e a conversar com "A insustentável leveza de Juveninho"

“Juveninho é uma voz singular no Brasil”, escreveu certa vez o editor da Record, Carlos Andreazza, referindo-se ao personagem insaciável (intelectualmente, diria o próprio personagem) que desnudou a vida íntima da juventude brasileira, embora as boas e más línguas cariocas, baianas, paulistas, mineiras, gaúchas… sugiram que ele desnudou mesmo foram as morenas – o que Juveninho, discípulo inconfesso do poeta romano Ovidio, nega solenemente.
 
Ninguém sabe ao certo o que Juveninho apronta por aí e reza a lenda que ele anda sumido por medo de que os paparazzi revelem tudinho e aniquilem assim a força dos grandes mistérios literários. Há quem diga, porém, que ele anda recluso até mesmo no carnaval, porque estaria escrevendo a sua autobiografia não-autorizada, leitura indispensável a todos que vivem as dores e as delícias dos sentimentos e desejos humanos, ainda que não tenham a sua volúpia…
 
Neste famigerado episódio da obra incansavelmente pirateada a seu respeito – episódio este essencial em tempos carnavalescos (durante o ano inteiro no Brasil, portanto) -, Juveninho “Kundera” cobra a leveza faltante das moças que não sabem conversar e ensina aos rapazes (embora não tenha sido esta a sua intenção) a memorável estratégia do “Auto-Quiz”. A educação sentimental juveniniana está de volta. E este blog, em ritmo de folia, anuncia que é só o começo.

A insustentável leveza de Juveninho [25/08/2011]

O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo.

Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser

O que é o flerte?

A pergunta é de Milan Kundera em A insustentável leveza do ser. E se, bem ou mal, estamos todos flertando, diz Juveninho, convém saber do que se trata. 

O flerte, segundo Kundera, é um comportamento que deve sugerir que uma aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ser entendida como uma certeza. “Em outras palavras, o flerte é uma promessa de coito, mas uma promessa sem garantia.”

Juveninho é especialista em matéria de coito. Não pode ouvir uma promessa morena que quer logo extrair a garantia. Mas não se afoba. Principalmente quando é ele mesmo, Juveninho, o autor da promessa. Para Kundera, o virtuosismo do flerte reside precisamente no equilíbrio entre a promessa e a ausência de garantia: a arte, segundo Juveninho, de prometer sem se comprometer – de manter verossímil a alegação de que tudo não passou de educação, simpatia e afeto, ou, como diria o aposentado orkut: “sou legal, não tô te dando mole”.
 
Muitas amizades entre homens e mulheres – e elas existem, afirma Juveninho – começam a partir do flerte, ou, mais precisamente, são resultados de um flerte não correspondido. Juveninho não vê nisso mal algum, muito pelo contrário: vê somente o indício de uma maturidade, que se revela na habilidade de lidar com coitos potenciais. Da mesma forma que ninguém precisa chegar às vias de fato, ninguém precisa ignorar ou excluir do seu convívio real ou virtual aqueles que um dia se aproximaram de maneira meramente sugestiva. Ver em cada aproximação um estupro potencial é, para Juveninho, o aspecto definidor de uma moça besta.
 
E moça besta, ele diz, é o que não falta na Zona Sul do Rio de Janeiro. Numa província de elite em que toda a cultura se resume a “curtir a vida” (adoidado), gastando fortunas (em viagens, ingressos, roupas, bebidas) para fugir a qualquer esforço de inteligência e realização superior, nada mais natural, segundo Juveninho, que essas moças só se interessem por aquilo que lhes desperta um desejo imediato de consumo; e que, por pura projeção, só possam conceber a curiosidade masculina como uma tentativa de consumi-las com urgência, como se o simples fato de serem aparentemente desejáveis as eximisse de serem efetivamente interessantes.
 
Com efeito, lamenta Juveninho, o comportamento que sugere que uma aproximação sexual é possível (às vezes, um mero “boa noite”) já soa como a própria intimação ao coito, devendo ser imediatamente rechaçado com ar blasé ou correspondido tão somente como concessão, uma atenção emprestada por quem se dispensa da mais mínima participação ativa no processo. Antigamente, ao “conversar” com moças incapazes de lhe fazer uma única pergunta, Juveninho desandava a falar de si, para ver se, subitamente, elas despertavam da passividade. Hoje, tem um método mais eficaz: inverte as perguntas, como numa espécie de “Auto-Quiz”.
 
- Quantos irmãos eu tenho?
– Você? Ué… Não sei.
– Meus pais são casados?
– Seus pais? Como assim!?
– O que eu desejo estar fazendo daqui a 10 anos?
– Eu, hein! Como posso saber isso!?
– Qual era o nome do cachorro que tive na infância?
– Cruz credo, cara! Você é maluco!
 
É verdade que nem sempre funciona. Quem quiser ter uma conversa de verdade, segundo Juveninho, no grande parquinho que se tornou a Zona Sul, é logo considerado um maluco. Todo o repertório de assuntos que constitui o conteúdo verbal do flerte – ou de qualquer outra possibilidade de relação – se resume, quando muito, ao que se fez no último fim de semana e o que se fará no próximo, de preferência com interlocutores já devidamente apresentados por parentes ou amigos em comum, porque, nas palavras de Juveninho, ninguém pode falar com estranhos nem andar sem mão dada no parquinho.
 
Enquanto circular incólume a crença geral de que a economia move o mundo, avulsa e desencarnada, como se não fosse ela determinada por fatores intelectuais, culturais, éticos, psicológicos e religiosos, e enquanto todos estes estiverem reduzidos à propaganda político-partidária, a obsessão dinheirista-consumista regerá também a vida social e amorosa das elites, com todo o seu poder de esvaziar o cérebro de mocinhas encantadoras, todas elas, segundo Juveninho, muito mais adestradas a usufruir um homem (como uma bolsa ou um sabonete) do que a conhecê-lo de fato para além de suas posses e poses, criando aquele vínculo profundo sem o qual toda relação é tão descartável quanto um notebook velho.
 
Não quer com isso, Juveninho, desprezar o papel dos atributos físicos – ou, ao menos, manifestados pela aparência imediata – na hora do flerte. Admirador incontornável das carnes morenas e douradas, Juveninho seria o último a exaltar as vantagens do amor desencarnado. Mas esclarece: uma coisa é o desejo de coito (aplicável a numerosas moças), outra bem diversa é o encanto. Milan Kundera acredita que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. O problema é que aquelas poucas mulheres que realmente encantam, comovem, dão beleza à vida de Juveninho – entrando em sua memória poética e fazendo dez embaixadinhas lá dentro –, normalmente são as mais bestas de todas.
 
Os amigos não se conformam.
 
- Mas e fulana, Juveninho? Aquela gostosa!
– Não entra na minha memória poética.
– Mas entra na sauna, não é?
– …
– E beltrana? Mó gatinha…
– Bate na trave.
– E sicrana? Você era apaixonado por ela!
– É besta.
– É besta ou você não entra na memória poética dela?
– É besta.
– Como você sabe?
– Nunca me fez uma pergunta.
– Ela não pode estar desinteressada?
– Pode. Não pode é ser besta.
 
Até os amigos agora fazem perguntas a Juveninho. Nenhum quer parecer tão besta quanto as moças mais encantadoras da cidade. Todos já sabem de cor quantos irmãos tem Juveninho, se seus pais são casados, o que ele deseja estar fazendo daqui a 10 anos e qual era o nome do cachorro (um fox terrier, eles gritam!) que Juveninho teve na infância. Imploram pelo romance autobiográfico A insustentável leveza de Juveninho, regado a muitos diálogos de “Auto-Quiz”. Alguns, aliás, confessam que colocaram o método em prática, com relativo sucesso. Outros, que pararam de puxar o cabelo das moças nos eventos, porque isto sim é intimar ao coito. As amigas admitem que andam interagindo com os estranhos no parquinho, porque ignorá-los, sobretudo se gentis, é de fato tão grosseiro quanto, para os homens, puxar o cabelo; e que, apesar de um ou outro Trem Fantasma, conquistaram amizades e conhecimentos assim, sem mais antecipar o momento do “não”. Por fim, todos exigem papeis de destaque na grande obra juveniniana, embora temam a maneira como serão descritos.
 
Juveninho conversa com cada um deles. Não os rechaça. Não os exclui. Não é besta nem nada. Trata os fãs com educação, embora prefira conhecer as tietes. Seu comportamento sugere apenas que o livro é possível, sem que essa eventualidade seja entendida como uma certeza. É uma promessa de romance, mas uma promessa sem garantia.
 
Até porque, pensa Juveninho, a literatura é como a maturidade: bem ou mal, também se revela enquanto estamos flertando.

Capítulo I - Vamos renascer das cinzas

“Começar – o resto vem depois.”
Rubem Fonseca

Por que Juveninho escreveria um romance?
 
Está, como Proust, em busca do tempo perdido? Está! Mas não vai lhe dedicar sete volumes.
 
Quer, como Clarice Lispector, sentir a própria “alma falando e cantando, às vezes chorando”? Quer! Mas não vai “desabrochar” como Clarice, porque não pega bem homem “desabrochando”.
 
Crê, como personagem de Rubem Fonseca, que a força do ato e não apenas da imaginação é a impulsão que fará de si um verdadeiro escritor? Crê! Que um escritor não pode livrar-se da sua vidinha? Um escritor não pode livrar-se da sua vidinha!
 
Parece-lhe difícil, como a Mario Vargas Llosa, alguém se tornar um criador se não escrever estimulado por aqueles fantasmas (ou demônios) que carrega dentro de si? Parece impossível! Que é uma tarefa árdua, plena de decepções e angústias, a elaboração de um romance? É um inferno a elaboração de um romance!
 
Sabe, como ensinava o Professor Antolini a Holden Caufield, que muitos homens já enfrentaram os mesmos problemas espirituais e morais que ele, e que, felizmente, alguns deixaram o registro de seus problemas, tal qual ele também pode fazer um dia? Claro! (E fará bonito!) Acredita que tem algo a oferecer, que alguém irá aprender alguma coisa com ele? Tem muito a oferecer! Concorda que os homens instruídos e cultos, se tiverem brilho e capacidade criadora, tendem a deixar registros infinitamente mais valiosos do que aqueles que apenas têm brilho e capacidade criadora? Concorda! (E julga-se instruído, culto, criativo e brilhante!) Compreende que, na maioria dos casos, eles têm mais humildade do que o pensador menos culto? Decerto! (Também é humilde, Juveninho!)
 
Já notou, como Henry Miller, que, quando tentamos fazer algo que ultrapassa nossos poderes, é inútil buscar a aprovação dos amigos? Muitas vezes! Que eles só acreditam em você na medida em que o conhecem? E eles não conhecem nem meio Juveninho! Que a possibilidade de que você seja maior do que parece é perturbadora, pois a amizade se baseia na reciprocidade? Azar o deles! (Juveninho chegou para perturbar!) Que é quase uma lei: toda vez que um homem embarca numa grande aventura, precisa cortar todos os laços? Adeus, laços! Que precisa isolar-se no meio do nada, e quando já enfrentou a si mesmo em combate precisa voltar e escolher um discípulo? Ao combate! (E que a discípula seja morena!)
 
Então Juveninho acredita, como Ivan Lessa, que o único bom motivo para escrever um livro é irritar os amigos? Acredita! (Não vê a hora de irritar um por um!) Que, se realmente for escrever, deve tratar o resto da humanidade aos tapas e pontapés? Sem dúvida! (Aos socos no estômago, também!)
 
Tem, como alertava Mario de Andrade a Fernando Sabino, saúde mental pra não se amolar com os outros, com as incompreensões alheias, com as humilhações? Que se danem os outros! Tem orgulho e coragem suficientes pra mandar o mundo à puta-que-o-pariu, em benefício desse mesmo mundo imbecil? À puta-que-o-pariu o mundo!
 
Mas ainda sofre, como descrevia alguém citado por Sertillanges, da dificuldade dos romancistas em nossos dias, qual seja, a de que se eles não frequentam a sociedade, seus livros são ilegíveis, e se a frequentam, eles não têm mais tempo para escrevê-los? Sofre o diabo, Juveninho! (Também frequenta a internet!) Sente portanto a angústia da medida certa, que reaparece por toda parte? Sente muito! (Mas vai acertá-la agora mesmo!)
 
Está, pois, consciente, como Thomas Mann, de que para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e tem um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta? Está consciente, Juveninho! (E moralmente isolado! E independente! E robusto!)
 
Acha, como Ítalo Calvino, que a experiência, ao dar forma a uma obra literária, definha, destrói-se? Juveninho quer definhá-la, quer destruí-la! Que o primeiro livro, o melhor seria nunca tê-lo escrito? Nunca! (Mas precisa escrevê-lo!)
 
E vai começar agora?
 
Depois de um cineminha, talvez.

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