O contexto da China - Para além da pandemia, por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

Publicado em 23/03/2020 13:07
Antes de proferir bravatas rasas e óbvias contra a China tratemos de compreender o maior tigre asiático


Alguém já disse que a  lucidez nasce dos becos sem saída e a luz nos faz corrigir rumos.
Antes de embarcar na escuridão do preconceito, do ódio e da ignorância, das frases feitas e deduções óbvias,  é preciso dar um passo atrás e enxergar todo o quadro.
Vamos pensar um pouco sobre a campanha violenta nas redes sociais armada contra os chineses, acusando-os de manter "hábitos alimentares arriscados"  e  "deliberadamente" permitir a expansão da pandemia para resto do globo,  como se o regime comunista chinês houvesse produzido um novo "Chernobil" contra o mundo... 
É preciso, de fato,  desarmar o espírito para compreender o fenômeno. 
Ainda que o governo Chinês houvesse acordado tarde para o problema, ainda assim o vírus sairia da China, porque o trânsito de micro-organismos é um fenômeno vinculado à globalização. 
Sejamos claros. Antes do oriente globalizar seus micro-organismos, foram os orientais que durante milênios sofreram com os nossos.
Podemos ir mais longe. Na verdade, desde as primeiras migrações do homo sapiens, da áfrica para a europa e da ásia para as américas, os micro-organismos fizeram em paralelo sua  colonização. 
Com as navegações, no Século XV, iniciou-se o longo processo de globalização econômica e, desde então,  micro-organismos transitam por oceanos, linhas férreas, auto-estradas e aviões, transportados pelos seres humanos, pelos animais, pelos produtos vegetais, pelos reservatórios de água das embarcações e pelos alimentos, infectando povos inteiros indiscriminadamente.
A China agora exporta os seus, e isso decorre de uma série de fatores relacionados aos hábitos alimentares, história e cultura. No entanto, o mecanismo de transmissão é global - não constitui um privilégio chinês.
Desde a gripe SARS - síndrome respiratória aguda grave, provocada pelo "velho" corona vírus, no início deste século, os relatórios de inteligência de todo o mundo, passaram a considerar surtos epidêmicos como fator de risco a ser considerado no planejamento estratégico da segurança da população.  
A epidemiologia avançou muito nas últimas décadas e hoje integra estudos e análises que abrangem da administração hospitalar às mudanças climáticas globais. 
Assim, francamente, ninguém foi surpreendido com a possibilidade de um surto epidêmico. O que surpreende, agora, é a velocidade e a impressionante capacidade de expansão da síndrome. E isso não se deve a nenhuma armação secreta ou plano diabólico dos "comunistas amarelos". Como visto, faz parte da dinâmica logística crescente da própria globalização econômica.
Há, nesse sentido, uma profunda ignorância quanto ao comportamento chinês nessa dinâmica de globalização.  A China não expande fronteiras e, sim, amplia seu comércio - algo bem diverso do modus operandi atribuído ao imperialismo ocidental ou japonês, como  registra a história. 
Por sua vez, há uma profunda transformação em curso no comportamento político chinês. 
A China vem efetivando uma transformação econômica gigantesca, de transição do modelo estatal,  socialista,  para o capitalismo. E vem introduzindo uma economia de mercado com muito planejamento - com todas as crises a ela inerentes, inclusos políticas.   Nesse sentido, é preciso compreender que sempre foi um desafio milenar exercer o governo na China, para milhões ou bilhões de habitantes, alimentar bocas famintas, dar dignidade a uma massa subempregada, administrar de maneira uniforme a multiculturalidade e a diversidade étnica que caracteriza seus cantões. 
A agressividade "anti-imperialista" de quarenta anos atrás, foi substituída pelo rápido aprendizado da negociação dentro das regras e da ética de mercado. A dissimulação foi trocada pela ação objetiva dentro das regras e claro que o novo sistema enfrenta reações burocráticas. Saber lidar com a transparência, por exemplo, é um duro e doloroso aprendizado...   
O grande segredo chinês, no entanto,   não está no objeto do lucro, mas na socialização deste sob orientação do Estado. Algo que deve ser compreendido no contexto da absorção material do mercado plural por um regime nominalmente monolítico - que não abandonou totalmente sua base maoísta. 
A China evoluiu apostando firmemente na educação. Com a evolução de sua base educacional, formou uma extensa elite pensante que não mais se enquadra no rol de palavras de ordem populistas  da antiga revolução cultural, porém permanece firmemente conscientizada da necessidade de garantir a independência, a dignidade e o orgulho do povo chinês - afinal, se a China é herdeira de uma civilização milenar, também é detentora de uma história trágica de sucessivos e seculares períodos de submissão à tiranias estrangeiras. 
A superação pela educação deveria ser  analisada com muito respeito por todo o ocidente, pois é o grande trunfo chinês. É assim que, hoje, a China forma engenheiros, anualmente, na faixa das centenas de milhares, enquanto os EUA o fazem na proporção de três dezenas de milhares,  todos os anos. 
Aliás, hoje, na China, ter o diploma é requisito para gerir o país. Lá, a política é administrada com engenharia literalmente. 
O abandono da busca pela padronização social foi dolorido e impactante. Mas hoje, a diversidade está presente na sociedade chinesa. Essa nova sociedade aberta para o mundo, está gerando uma nova cultura, nova ciência e construindo uma fantástica infraestrutura... e também gerando novos surtos epidêmicos.
É preciso, portanto, somar melhores leituras da experiência  chinesa de transição do "socialismo estatal" para o "socialismo do capital", e do fenômeno do resgate e redefinição de uma cultura milenar. Só assim poderemos verificar que a força da globalização da economia chinesa passa muito longe da visão "selvagem",  propiciada pela mesquinhez globalista ocidental... ou  se amolda ao modelito embutido no discursos  pobres de cultura e ricos de bobagens do populismo - este sim, o grande inimigo interno que frutifica como parasita no seio das nações soberanistas.
Com a muito simples e impressionantemente eficaz estratégia do "Cinturão da Seda" e da "Rota da Seda", os chineses vão devorando o mercado mundial, gerando novos "tigres asiáticos"e consolidando blocos econômicos,  enquanto o ocidente se perde na administração da mediocridade do marxismo cultural, das bravatas do populismo de gaveta, da imensa concentração de capitais, do politicamente correto e da massa de desalentados, excluídos e refugiados...
Definitivamente, globalização não se confunde com "Nova Ordem Mundial".  Por isso mesmo, a China não guarda qualquer relação com o modelo globalista, embora esteja totalmente envolvida pela globalização.  
Aliás, a globalização deve ser compartilhada mediante a democratização de todos os bônus e ônus da economia, de maneira igualitária, inclusiva e humanizada.
É aí que devemos compreender o fenômeno da pandemia com a qual lidamos. 
Claro que há muita estratégia de Estado e mercadológica ao par da pandemia. A China está regulando estoques - e por óbvio é o que lhe resta fazer agora. O ocidente acelera a transferência de dinheiro no mercado de bolsas e fundos Edge. E todos estão atentos aos especuladores.
Isso é do mercado. Nesse jogo, o Brasil está aliás  bem situado.
Assim, é hora de por a mão na consciência parar de gerar incidentes diplomáticos em prol de bravatas rasas e óbvias. 
Antes de colarmos na China - o maior parceiro comercial do Brasil,  o rótulo de "inimigo", tratemos de identificar os verdadeiros inimigos da pátria - aqueles empenhados em desviar a atenção de sua absoluta inoperância apontando "o perigo amarelo" como ameaça.  Quem assim age não percebe que a China estará, sim, compondo a equação do imenso "Plano Marshall" que está por vir, visando recuperar a economia do Brasil e do mundo, e que  será implementado após essa desastrosa pandemia.
Responsabilidades serão assumidas nesse processo. Razão pela qual soa ridículo cobrá-las agora, quando até mesmo os respiradores disponíveis para enfrentar a síndrome respiratória da pandemia... vêm da China.  

Outra questão estratégica, relacionada à parceria comercial do Brasil com a China, passa pelo sentido da confiabilidade da relação a longo prazo. Por isso, incidentes diplomáticos gratuitos e campanhas intensas em rede social demonizando a China e seu regime, podem resultar em problema a médio e longo prazo. Os chineses estudam e planejam suas reações milimetricamente. 
Nesse sentido, é preciso compreender como o oriental pensa.

O exemplo histórico pode vir da relação entre os EUA e o Japão - que resultou no gigantismo do agronegócio brasileiro.

O Japão,  entre meados dos anos 60 e início dos anos 70, no século passado, sofria boicotes sistemáticos do governo norte americano no fornecimento de soja. Os japoneses eram demonizados como piratas tecnológicos em discursos no parlamento, na mídia e até mesmo no cinema. Nixon chegou a ordenar um embargo em represália à atividade de "espionagem industrial" japonesa - na certeza de que os japoneses não tinham alternativa de fornecimento.

Pois bem, foram os japoneses que incentivaram o plantio da soja no Brasil. O nipônicos organizaram cooperativas, como a de Cotia, financiaram os cultivos e a produção em larga escala da soja. Auxiliaram também na produção hoti-fruti-granjeira e nos elevaram, com transferência de tecnologia, à categoria de grandes fornecedores de proteína animal e vegetal para a ásia e para o mundo. Tudo isso, por conta da soberba norte-americana... 


Memória é essencial, para não repetirmos os erros que outros cometeram no passado. Hora de resolver a pendência diplomática sem soberba e planejar as ações. Decidirmos o que fazer hoje, cientes do que ocorreu ontem e visando o que queremos amanhã.
Fica a reflexão  diante do  caos. 
Na verdade, nosso maior problema não é o Corona vírus, o Sars, a Influenza, o H1N1 e todas as pestilências que nos afetam. O que nos atormenta é a falta de respeito dos governos ás necessidades humanas. É não instituírem uma conduta planejada,  verdadeiramente humanitária, universal e  de prevenção. 
O que nos aflige é não ver os investimentos em tecnologia serem dispostos a serviço do cidadão, das pessoas, do ser humano.  
A arrogância e o preconceito são inimigos do conhecimento. 
Aprender a conhecer requer um duro exercício de humildade. Esse é e continua sendo nosso grande desafio!
 

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Antonio Fernando Pinheiro Pedro

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