Fome, Direito e Acesso à Terra: Mitos e Verdades, por Guilherme Medeiros

Publicado em 18/10/2021 14:05
Guilherme Medeiros é Professor de Direito Agrário

No último dia 14 de Outubro, militantes da Via Campesina, uma espécie de confederação internacional de movimentos agrários de diversos países do mundo, como o brasileiro MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), promoveu um ato de invasão à sede da Aprosoja, no Lago Sul, em Brasília.  A invasão à sede da entidade, onde também funcionam a Abras, a Abramilho e o Canal Rural, foi descrita como parte da estratégia do grupo para marcar o Dia Mundial da Alimentação, que transcorreu no sábado, 16 de Outubro, e pretendia denunciar a agricultura empresarial como co-responsável pela fome de milhões de brasileiros no atual contexto de crise econômica. Mais especificamente, o ato visava protestar contra o governo federal, a quem acusam de paralisar a reforma agrária e vetar iniciativas legais de benefício à agricultura familiar, contribuindo, segundo eles, para o aumento da fome no país.

Ainda que ignorássemos o caráter essencialmente ilegal da invasão, a pauta de reivindicações, apresentada por muitos órgãos de imprensa como uma coleção de beatitudes, é uma saraivada de mistificações. Que alguém seja capaz de levar a sério isso de o agronegócio ser apontado como responsável pela fome no planeta, para quem conhece um mínimo do assunto, é "de trincar catedrais", como diria o saudoso e genial Roberto Campos. No entanto, essa ideia é popular nas redações de muitos jornalões do país, o que por si só é um diagnóstico de boa parte do jornalismo brasileiro, contaminado por intoxicação ideológica e ignorância atávica sobre Economia, Direito Agrário e o processo agrícola como um todo.

Pois bem, uma das alegadas razões para o protesto foi o veto presidencial ao Projeto de Lei 823/21, que procurava instituir uma espécie de Auxílio Emergencial exclusivo para agricultores familiares. O que não deixa de ser paradoxal, pois se somente a agricultura familiar pode salvar o planeta e o Brasil da fome, o setor não deveria estar precisando de auxílio, mas sim ajudando a sustentar os outros elos da economia. Quem cumpre este papel, ora vejam, é justamente o agronegócio, setor que transformou o Brasil em campeão mundial da produção de alimentos. Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), uma Nação conquista a plena Segurança Alimentar quando sua produção atinge os 200 kg de grãos por habitante. A criticada agricultura empresarial, com seu investimento maciço em pesquisa e tecnologia, em 2020 superou os 266 milhões de toneladas de grãos - mais de uma tonelada por habitante. 

Sobre obstaculizar o acesso à terra, mais uma mistificação. Curiosamente, todo o arcabouço jurídico que estabelece os regulamentos para o acesso à terra através da reforma agrária foi obra do regime militar, através do Estatuto da Terra, sancionado pelo presidente Castelo Branco. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, atualmente subordinado ao Ministério da Agricultura, foi criado na gestão presidencial do gaúcho Emílio Médici. Portanto, a reforma agrária no contexto legal brasileiro é concebida como uma ferramenta do capitalismo. 

Os movimentos que historicamente usaram invasões de propriedades e esbulho possessório como ferramenta de pressão - MST e Via Campesina, entre outros - ignoram convenientemente que centenas de milhares de assentamentos federais pelo Brasil afora, em vez de serem colônias agrárias produtivas, concentram algumas das populações mais vulneráveis do campo, dependentes de programas sociais.  

Outro dado negligenciado por estes movimentos é o esforço feito pelo atual governo federal para promover a regularização fundiária e a titulação agrária de centenas de agricultores em assentamentos, prejudicado quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, não pautou a votação da MP da Regularização Fundiária, inibindo a vigência de mecanismos legais mais eficazes e ágeis para desburocratizar.  Mesmo assim, com as regras do Estatuto da Terra, tem sido feito um esforço em todo o Brasil para conceder o título definitivo aos assentados que completam dez anos de permanência na terra, para que possam, finalmente, ser donos de fato e de direito de seu pedaço de chão, e não apenas portadores de uma concessão de uso a título precário. Curiosamente, os governos federais anteriores, apoiados pelo MST e Via Campesina, enquanto multiplicavam a criação de assentamentos, ignoravam a entrega dos títulos definitivos. Entre 2019 e 2020, o falecido superintendente do Incra no Rio Grande do Sul, o produtor rural Tarso Teixeira - um saudoso e particular amigo - concedeu mais títulos definitivos aos assentados gaúchos do que foi feito nos 49 anos anteriores da existência do Incra.

O acesso à terra pelas populações menos favorecidas, mais que um direito, é uma estratégia para a garantia do fortalecimento da agricultura familiar, respaldada na legislação agrária vigente. No entanto, os caminhos para sua consolidação não legitimam atos criminosos ou a beligerância contra a agronegócio. Na verdade, uma comunhão de esforços entre o agricultor familiar e a agricultura empresarial seria um passo indispensável para consolidar a paz social e a segurança alimentar dos brasileiros. Talvez a política devesse seguir, urgentemente, o exemplo do Direito Agrário, onde a dicotomia entre agronegócio e Agricultura Familiar simplesmente inexiste. Os caminhos para o acesso à terra numa Democracia continuam sendo a lei e a segurança jurídica, não os discursos e punhos cerrados.

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Guilherme Medeiros

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