Risco erosivo, uma constante na agricultura brasileira, por Afonso Peche
O risco erosivo é uma ameaça real e persistente para grande parte das terras férteis do Brasil. Em um país tropical, onde a energia das chuvas costuma ser alta, a estabilidade produtiva depende de uma condição básica: manter o solo estruturado, protegido e biologicamente ativo. No entanto, ainda se observa, em muitas regiões, a insistência em sistemas convencionais que fragilizam o solo safra após safra. Quando o manejo se torna sinônimo de mobilização intensa, pulverização da camada superficial e exposição prolongada, o risco erosivo deixa de ser uma possibilidade e passa a ser uma certeza estatística, variando apenas a intensidade, a velocidade e a área afetada.
Do ponto de vista técnico, erosão não é apenas “terra indo embora”: é perda de função. Perde-se a camada mais fértil, rica em matéria orgânica, nutrientes, porosidade e vida do solo. Perde-se a capacidade de infiltrar água, reduz-se a recarga hídrica, aumentam-se enxurradas e picos de cheia. E, como consequência, cresce a necessidade de correções e insumos para compensar um solo que, paradoxalmente, foi degradado pelo próprio modelo de produção que prometia eficiência. O risco erosivo, portanto, não é um evento isolado: é um processo cumulativo e sistêmico, alimentado por decisões repetidas.
A pergunta “por que ocorre a erosão?” precisa ser respondida com clareza, sem suavizações. A erosão ocorre porque o solo é tratado como um substrato inerte, e não como um sistema vivo. Ocorre porque se naturalizou o solo exposto, como se a nudez do chão fosse um detalhe estético e não uma condição ecológica crítica. Ocorre porque o preparo convencional, ao desagregar e homogeneizar, reduz a coesão dos agregados e facilita o selamento superficial; porque o tráfego e o revolvimento criam camadas compactadas, diminuindo a infiltração e aumentando o escoamento superficial; porque linhas de plantio em sentido do declive e ausência de práticas conservacionistas transformam a chuva em força de arraste.
Mas a erosão não é causada “pela chuva”, como se a natureza fosse a culpada. A chuva é o agente; a causa é a vulnerabilidade construída. Em ambientes tropicais, essa vulnerabilidade cresce quando se repete o ciclo de exposição do solo entre safras, quando se reduz a diversidade de plantas e raízes, quando se abandona a cobertura permanente, e quando se substitui a inteligência do manejo pela força mecânica. É aí que a crítica social se torna inevitável: trata-se de uma degradação patrocinada por escolhas técnicas, econômicas e culturais, e, muitas vezes, por políticas e incentivos que ainda premiam o curto prazo.
A erosão também não é um problema “do agricultor” apenas. Ela prejudica toda a sociedade. O sedimento carregado para cursos d’água assoreia rios e reservatórios, encarece o tratamento de água, reduz a vida útil de barragens e eleva riscos de enchentes. A lama nas estradas rurais afeta transporte escolar, acesso a serviços de saúde e logística de alimentos. A perda de produtividade no campo aumenta custos, pressiona preços e, em cenários extremos, compromete a segurança alimentar. Crianças e idosos, moradores de cidades e do campo, pagam a conta de um solo que foi deixado desprotegido.
Chamar esse quadro de “estupidez humana” é duro, mas há um núcleo de verdade: é irracional insistir em sistemas arcaicos e inadequados para as condições tropicais quando já se conhece, técnica e empiricamente, o caminho da conservação. A saída não é retórica, é manejo. A redução do risco erosivo passa por princípios claros: cobertura permanente do solo (palhada e cobertura viva), mínimo revolvimento, raízes ativas por mais tempo no ano, diversidade de espécies, correção de compactação com diagnóstico e estratégia (não com revolvimento indiscriminado), plantio em nível, terraceamento bem dimensionado quando necessário, e integração de práticas que elevem infiltração e agregação.
O risco erosivo é uma constante na agricultura brasileira porque ainda é constante a desconexão entre produção e ecologia. Enfrentá-lo é escolher um projeto de agricultura que reconheça o solo como patrimônio público invisível: privado na matrícula, coletivo nas consequências. A erosão é, em última instância, um indicador moral do manejo: revela se a sociedade está produzindo alimento com responsabilidade territorial ou exportando, junto com grãos e fibras, o futuro do próprio chão que a sustenta.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.
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