Venezuela: Nicolás Maduro, privatizador (por HÉCTOR E. SCHAMIS, no EL PAÍS)

Publicado em 20/08/2014 21:08
O chavismo, que nacionalizou até a produção de arroz e feijão, agora caminha para privatizar o ativo estratégico mais importante do país

Trata-se da Citgo, empresa de refinamento e venda de gasolina. É proprietária de seis mil postos de gasolina e três refinarias - em Illinois, Texas e Louisiana - e emprega quatro mil pessoas. As refinarias são de alta tecnologia, das poucas com capacidade para processar óleo cru pesado. É uma empresa importante, parte da paisagem nas estradas de toda a costa leste do país. Isso inclui o lendário Fenway Park, lar dos Red Sox de Boston, onde não existe nenhum home run que não esteja ligada à Citgo, presente ali desde 1965, graças a um gigantesco aviso publicitário atrás das grades. Essa presença permitiu à empresa ingressar no próprio coração dos torcedores de Boston, tanto que chegaram a protestar cada vez que se tentou remover o cartaz do lugar.

Uma dessas ocasiões foi em 2006, depois que Hugo Chávez se referiu a George W. Bush como “o diabo”. É que a dona da Citgo é a PDVSA, a empresa estatal de petróleo venezuelana, e naquela ocasião, um vereador propôs reparar o orgulho do presidente substituindo o anúncio pela bandeira dos Estados Unidos. Os torcedores ficaram do lado de sua memória esportiva - quer dizer, do lado da Citgo - e ali ela continua até hoje, sem nenhuma bandeira.

A Venezuela está hoje a ponto de perder este extraordinário recurso comercial, não por culpa de Boston, mas porque a Citgo está a venda. Não é a primeira vez que o tema aparece na agenda. Na verdade, a empresa já tinha vendido duas refinarias e três oleodutos no passado. O próprio Chávez costumava se queixar da Citgo com frequência e indicava que queria se livrar dela. Agora, no entanto, é mais que retórica. A crise das finanças públicas chegou a níveis sem precedentes, e o governo parece ter formalizado um acordo com o banco de investimento Lazard para que se encarregue das negociações de venda da totalidade da firma.

A racionalidade desta decisão não seria inconsistente com tantos outros erros de política econômica acumulados durante quinze anos, mas este caso supera todos os anteriores. Custa pensar que um país petroleiro renuncie voluntariamente à vantagem comparativa outorgada pela integração vertical de seu ativo. A Citgo converteu a Venezuela em um produtor e exportador que também controla autonomamente o processo de refinamento, distribuição e venda no mercado mais importante do planeta. Por que dar de presente a seus competidores os tanques de gasolina de milhões de automóveis norte-americanos?

E por que, além disso, introduzir incerteza futura no processo de refinamento, dado o limitado número de usinas capazes de tratar o óleo cru pesado como o venezuelano? Ninguém pode assegurar que essas usinas, com outros donos, não prefiram processar um óleo cru mais leve no futuro, por exemplo, o mexicano ou o canadense. O governo de Maduro não só desconhece a importância da demanda - no petróleo e em qualquer negócio -, mas também cria problemas do lado da oferta.

A privatização da Citgo tampouco faz sentido do ponto de vista estratégico, como política exterior. Se é verdade que os Estados Unidos são uma potência hostil, o império que conspira e fomenta a desestabilização do governo revolucionário, não seria essa uma razão mais que importante para conservar ferramentas de poder no próprio solo norte-americano? Por que renunciar também a se sentar na mesa grande da discussão sobre a política energética norte-americana e, como consequência, do resto do hemisfério? Do México à Noruega e ao Golfo Pérsico, sem esquecermos da Rússia, é difícil imaginar outro país exportador de petróleo tomando decisões para reduzir sua capacidade estrutural de negociação contra os Estados Unidos.

Para alguns, a “racionalidade” desta venda, então, teria a ver com as urgências de financiamento de curto prazo - a dramática crise fiscal - e a rapacidade do chavismo, quer dizer, sua inata propensão às práticas corruptas no que será um negócio milionário para todos os envolvidos. Outros, por sua vez, assinalaram a necessidade de eliminar ativos que poderiam ser embargáveis em caso de sentenças adversas pelos processos da Exxon Mobil e ConocoPhillips contra a PDVSA.

O caso em questão é outro exemplo que ilustra, mais uma vez, que os fatos não importam e a realidade não existe, que tudo pode ser reduzido ao relato, a uma narrativa esotérica que viola qualquer possibilidade de sermos objetivos. Os bolivarianos falam tanto sobre a economia estatal, mas destroem o Estado. São vítimas das conspirações do império, mas renunciam a conservar o poder dentro do território do próprio. São humildes socialistas, mas possuem contas em bancos internacionais com uma inimaginável quantidade de zeros em seus saldos.

Assim são as coisas, a suposta revolução completa um círculo, constituindo-se agora em privatizadora, como aqueles neoliberais que sempre são criticados, só que faz isso da maneira mais incompreensível. Pinochet, por exemplo, o hiper-privatizador, conservou o recurso estratégico do cobre - que tinha sido nacionalizado por Allende - nas mãos do Estado.

O chavismo, que expropriou até o fornecimento de arroz e feijão, agora caminha para privatizar o ativo estratégico mais importante do país. Finalmente, entende-se porque falam de socialismo do século XXI. O socialismo do século XX fazia exatamente o contrário.

Twitter: @hectorschamis

A dolorosa caravana dos sem-nome, por Juan Arias

A multidão de trabalhadores pobres que passam ao nosso lado sem que pronunciemos seu nome também é carne e sangue da nossa sociedade

Em nosso mundo, onde tudo está exposto ao sol da praça pública através da Internet, onde é fácil saber tudo sobre todos, existe ainda a triste caravana dos sem-nome. Não vivem nos desertos, nem fora do mundo. Vivem lado a lado conosco. São os que realizam os trabalhos mais humildes. Eles também são alguém, cultivam sonhos e estão escrevendo a história junto conosco.

Chegam até a porta da nossa casa; às vezes vêm dos subúrbios da violência, ajudam a resolver os nossos pequenos problemas da vida cotidiana, mas ignoramos os seus nomes, nem estamos muito interessados: eles são o atendente do mercado, o carteiro, o vendedor de bugigangas, o que traz o botijão de gás, ou limpa a fossa, o office-boy do escritório.

É o que nos entrega as plantas que compramos para o jardim, a caixa do supermercado, o policial na esquina.

Todos eles, próximos a nossa vida e até mesmo a nossa pele, de quem podemos sentir a respiração, passam por nossas vidas como sombras, sem identidade.

É algo que me ajudou a pensar dias atrás minha mulher, Roseana, quando me contou que o rapaz que tinha vindo trazer a compra do mercado do lado, ficou surpreso e emocionado quando ela lhe perguntou quem ele era: “Sou do mercado Yegue” , disse. Sim, mas eu quero saber o seu nome. O rapaz ficou surpreso e depois de alguns segundos se atreveu a pronunciar seu nome, quase em voz baixa, como se revelasse um segredo: “Meu nome é Richard”.

Minha mulher me contou que depois de um momento de surpresa, seus olhos se iluminaram e se atreveu a dizer: “Dá gosto vir aqui”.

Eu chegava da rua quando ele estava de saída e, sem saber da história, fiquei surpreso quando me disse com voz confiante: “Se o senhor precisar de mais alguma coisa, é só ligar para o mercado que eu trago logo”. Era a sua maneira de nos agradecer por ter querido saber o seu nome.

Que dimensões tem essa caravana dos que se identificam apenas com aquele ou aqueles para quem trabalham, os que podem passar uma vida entre nós sem ouvir pronunciar seu nome?

A história me fez lembrar que a palavra caravana deriva etimologicamente do persa (karawan), que significa “fileira de animais de carga”. Hoje, no entanto, até os animais são chamados pelo nome, enquanto essa caravana de trabalhadores pobres passa pela vida sem que ninguém os reconheça como pessoas.

As caravanas ainda evocam em nosso mundo atual os êxodos forçados, as multidões de refugiados, as fugas em massa do inferno das guerras, os genocídios, as sepulturas sem nome.

E, no entanto, essas caravanas de homens e mulheres que passam ao nosso lado sem que nos preocupemos em saber como se chamam, são a carne e o sangue da nossa sociedade e encerram, em sua solidão interior, essa grandeza outorgada pela dor e pelo esquecimento injusto da sociedade.

A eles, se lhes servir de consolo, seria bom recordar que, na Bíblia, Deus é o “sem nome”. Os judeus não podiam pronunciar ou escrever o nome de Deus. Consideravam-no demasiado importante para pronunciar. E nós, que temos nomes e sobrenomes de sobra, não deveríamos esquecer que a cada ser humano anônimo que passa ao nosso lado é tão indispensável no Universo, como o que aparece carregado de nomes e títulos gloriosos.

Minha mulher, que é poeta, escreveu em um poema recordando a alegria que Richard sentiu quando ouviu dizer o nome dele naquela manhã em que nos trouxe compra de casa:

Os sem-nome,
os invisíveis,
passam como poeira
e nem deixam rastro
em nossa pele,
em nosso rosto.
Mas possuem olhos,
mãos,
sorrisos, lágrimas,
sonhos
e uma história que deveria
se entrelaçar com a tua,
com a minha.

Alguém escreveu que somos salvos ou nos perdemos juntos, os batizados e os sem-nome. Talvez não seja inútil lembrar disso nestes tempos em que novamente se põem a caminho, fugindo da violência, as dolorosas caravanas de gente sem presente e sem futuro.

Quando colocarmos o nosso voto nas urnas não faria mal se lembrar que deveria servir também e sobretudo a essa caravana de invisíveis em uma sociedade onde o que parece contar é o brilhar mais e aparecer.

(por JUAN ARIAS, El País)

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brasil.elPaís

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