A farra orçamentária, editorial do Estadão

Publicado em 26/12/2010 10:42

O Congresso Nacional aprovou mais um orçamento de mentirinha, para ser remendado pelo Executivo e usado de acordo com as conveniências políticas do governo e de seus aliados. Como de costume, os congressistas deram prioridade a seus interesses partidários e eleitorais - para dizer o mínimo - ao tratar da proposta de lei orçamentária. Os debates passaram longe de assuntos considerados importantes em democracias de longa tradição, como o bom uso do dinheiro público e a austeridade fiscal. No Brasil, a prática política atribuiu ao Tesouro, e a ninguém mais, os cuidados com a saúde financeira do Estado.

Esse script foi mais uma vez seguido: os parlamentares elevaram a arrecadação prevista. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, começou a negociar um corte, mas a projeção de receitas primárias, isto é, não financeiras, acabou ficando em R$ 990,5 bilhões, R$ 22,9 bilhões acima da previsão contida na proposta do Executivo. Caberá à Presidência da República, seguindo a rotina prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal, contingenciar os gastos no começo do exercício e depois ir liberando as verbas de acordo com a arrecadação efetiva.

A pantomima orçamentária foi enriquecida com a intervenção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, incapaz de disfarçar seu desejo de continuar governando. Quando o ministro da Fazenda, Guido Mantega, já convidado para permanecer no cargo, anunciou a possibilidade de cortar ou retardar investimentos do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, o presidente logo reagiu, declarando intocáveis as verbas do programa. Foram cortados R$ 3,4 bilhões, mas a Presidência da República foi autorizada a recompor o total de R$ 43,5 bilhões por meio de decreto.

O novo salário mínimo, especialmente importante para as despesas da Previdência, foi mantido em R$ 540, apesar das pressões dos grupos sindicais. Parlamentares do PDT defenderam pelo menos R$ 560. Mas o assunto não está liquidado. Foi criada uma reserva de R$ 5,6 bilhões para uma revisão.

A farra das emendas foi parecida com a de anos anteriores. A proposta de lei orçamentária foi usada mais uma vez para atender a interesses paroquiais e para beneficiar entidades com "fins não lucrativos". Acusado de favorecer entidades fantasmas, o senador Gim Argello (PTB-DF) renunciou à função de relator do projeto. Indicada para substituí-lo, a senadora Ideli Salvatti (PT-SC) também desistiu do posto, por ter sido convidada para chefiar o Ministério da Pesca. A função foi entregue, afinal, à senadora Serys Slhessarenko (PT-MT).

O escândalo em torno das emendas do senador Gim Argello teve pouco ou nenhum efeito pedagógico. Seus colegas congressistas continuaram dispostos a retalhar as verbas com os critérios de sempre.

Instituições "sem fins lucrativos", vinculadas principalmente às áreas de cultura e turismo, deverão receber em 2011 pouco mais de R$ 1 bilhão de recursos de emendas, se todos os desembolsos forem feitos. Propostas desse tipo foram apresentadas por 452 deputados e senadores.

Pouco mais de meio bilhão de reais foi desviado de programas de urbanização de favelas, saneamento, segurança do espaço aéreo, escolas e combate ao trabalho infantil - itens previstos na proposta original - para engordar emendas apresentadas por parlamentares. O programa "serviços urbanos de água e esgoto", por exemplo, perdeu R$ 126,4 milhões, segundo informe divulgado na quarta-feira pela organização Contas Abertas.

A grande polêmica, durante a tramitação, foi sobre o remanejamento de verbas do PAC. O Executivo poderá remanejar 25% sem pedir autorização - e não mais 30%, como até agora. Mas poderá chegar aos 30% se consultar a Comissão Mista de Orçamento.

Esse remanejamento é em princípio razoável, porque permite desviar dinheiro de obras com problemas para outras com melhores condições de execução. Mas a oposição não conseguiu produzir nada melhor do que essa tentativa de amarrar o Executivo. Uma oposição à altura de sua função institucional poderia, por exemplo, ter defendido a austeridade no gasto, ou, talvez, a moralização das emendas. Mas isso por enquanto é um sonho. 

O ciclo Lula dá adeus

GAUDÊNCIO TORQUATO - O Estado de S.Paulo

Daqui a seis dias, no final da tarde de sábado, Luiz Inácio Lula da Silva descerá a rampa do Palácio do Planalto, deixando a condição de mandatário-mor do País. Nesse momento, as cortinas descerão sobre um palco aberto em 1.º de janeiro de 2003, onde peças sempre bem aplaudidas exibiram a performance do mais prestigiado líder do Brasil contemporâneo, um dos raros a combinar dois celebrados conceitos de Maquiavel: a virtú e a fortuna. Ao maximizar seu prestígio junto às massas, reforçado por um perfil carismático, Lula administrou, de maneira exemplar, as circunstâncias de um tempo pleno de aspirações, atingindo, por consequência, o grau de maior provedor das necessidades do povo que governou. A sorte que bafejou o governante, soprada por ventos que revigoraram o ambiente econômico, foi usada por ele de maneira eficaz para estreitar as distâncias entre as classes sociais. Ajudou-o nessa tarefa a alma intuitiva de um brasileiro que saiu do andar mais baixo do edifício nacional. Alma plasmada pelas carências das populações mais sofridas. Esse tempero fez a diferença de estilo.

Afinal, o que foi o ciclo Lula? Foi, sobretudo, a era de intensa dinâmica social, que propiciou a inserção de apreciável contingente ao mercado de consumo. A pirâmide das classes teve seu meio alargado com afunilamento da base, ou seja, tornou-se menos triangular e mais retangular. Esse constitui o maior feito do governo comandado pelo ex-metalúrgico. Além de 30 milhões de brasileiros que ascenderam à classe média (baixa), outro núcleo se movimentou da margem extrema da base para um degrau acima, ou, nos termos da estratificação social, subiram da classe E para a D. Abre-se, aqui, um parêntesis. A ascensão social foi, é e sempre será meta prioritária das esquerdas. Por consequência, o PT procurou validar o seu passaporte esquerdista - até para estabelecer um diferencial sobre outros partidos - a partir da política de inserção social da era Lula. Mas é arrematado exagero dizer que uma guinada esquerdizante passou por aqui. Há tentativas naquela direção - como criação de controles na área de comunicação e abordagens polêmicas na política de direitos humanos -, mas um sistema de freios tem segurado as intenções. Ademais, vale lembrar que o ciclo Lula caracteriza-se também por sediar uma teia de siglas insossas, inodoras e incolores. E mais: o sucesso do programa de distribuição de renda e acesso ao crédito teve uma semente plantada no passado.

Sob essa leitura se esvanece a tese de que o grid de largada do Brasil na pista internacional é coisa exclusiva do governo Lula. Na verdade, a montagem da corrida se deu lá atrás, quando o ciclo Itamar/FHC abria os tempos estáveis do Plano Real. Por isso, parcela ponderável da expressão cívico/ufanista do período que se encerra faz parte do enredo de autoglorificação. O verbo solto que se emprega para exalar os feitos contemporâneos chega a lembrar o ciclo militar, quando a harmonia social, flagrada nas imagens de crianças brincando em jardins, se fundia com o verde-amarelo da bandeira, enquanto um hino cívico enaltecia o Brasil Potência. Nem por isso se pode diminuir a inequívoca virtú do presidente Lula, exercida nos palanques populares e nos salões nobres e irradiando influência. Exemplo é a imagem externa do Brasil. Ficou mais forte, apesar de rompantes da diplomacia, ao cortejar países de inequívoca tradição repressiva, como o Irã. Não se imagina evento de magnitude no plano internacional sem a voz do Brasil.

Os êxitos do lulismo, como se aduz, se devem sobretudo ao gerenciamento da economia. Ali se desenvolveu uma política conservadora. Controle de câmbio e juros elevados. A habilidade do dirigente em aproximar os frutos econômicos do estômago das massas - entendendo-se que as camadas atendidas incluíram fortes estratos das classes médias - ganhou realce nos palanques da redundância, que deram ampliação aos fatos e versões. Portanto, na esfera da propaganda, o refrão "nunca antes na história deste país" pode ser considerado verdadeiro. Errado é usá-lo para comparações em alguns campos, eis que há cinco, seis ou sete décadas não havia parâmetros para medir programas governamentais. Ademais, não se pode comparar um país de 195 milhões de habitantes, num mundo globalizado, com um território de 50, 60 ou 70 milhões num espaço cheio de fronteiras.

Já na seara política, a situação não avançou. Pode-se até concluir que Luiz Inácio usou com mais astúcia do que seus antecessores os meios de cooptação para formar sólida base de apoio ao governo. Passou perto dele o trem do mensalão, mesmo que defenda ter sido o fenômeno uma invenção da mídia. Ora, a Justiça provou que o processo ocorreu. A mesma sensação de que a coisa não andou ocorre nos campos da saúde, segurança, Previdência, tributos e trabalho. Viu-se, em compensação, um Judiciário mais solto e aberto, descendo de um altar inacessível para ficar mais próximo da sociedade. E tomou às mãos pautas da mais alta relevância. Cassou mandatos. E contou com o esforço de um batalhão de defensores da sociedade, arregimentados no Ministério Público. A corrupção não acabou, porém ficou mais exposta a controles.

Por último, a dúvida: com a descida da rampa, o ciclo Lula se encerra? Sem dúvida. A explicação para a resposta leva em consideração o fato de que os ciclos governamentais não se repetem, mesmo que antigos dirigentes sejam reconduzidos ao posto de comando. Relembramos a velha lição do filósofo: "Um rio nunca corre duas vezes pelo mesmo lugar." Lula, como ele próprio já piscou, pode até voltar em 2014. Mas o ambiente deverá ser diferente. Outros movimentos aparecerão no cenário. A dinâmica social continuará em evolução, enquanto núcleos organizados energizarão a sociedade. É possível prever a migração do voto do bolso para o voto da cabeça. Bom sinal. O rio correrá por outros lugares.

JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO TWITER: GAUDTORQUATO 

Os caminhos de Dilma


SUELY CALDAS - O Estado de S.Paulo

Até as eleições de 2012 a presidente Dilma Rousseff terá um ano e meio para aproveitar a força política das urnas e fazer o Congresso aprovar uma agenda que Lula desistiu de tocar, mas é fundamental para a economia prosperar, para tornar mais limpa a prática política, para a dívida social recuar e para acabar com a miséria. Se conseguir, seu governo será bem avaliado e dará a ela cacife para ser reeleita em 2014, desta vez sem apadrinhamento algum. Será um período difícil, concentrado no prazo exíguo e, ao mesmo tempo, ampliado em múltiplos segmentos em que a ação do governo é fundamental e determinante para fazer o País avançar.

Dessa agenda tudo é prioritário, mas a reforma política se sobrepõe, porque ela abre caminho para facilitar, acelerar e viabilizar todo o resto. É uma espécie de mãe de todas as reformas. Na visão limitada dos políticos, a reforma política é simplesmente prover dinheiro público para financiar campanhas eleitorais e ponto. Ela é muito mais. É a espinha dorsal do fortalecimento das instituições e da democracia, o anteparo ao fisiologismo e à corrupção, desencoraja o desvio do dinheiro público e força presidente, governadores e prefeitos a governarem melhor, com mais eficiência. O interesse público estará preservado e a população ficará agradecida se suas regras atenderem a esses objetivos. Importante também é não ceder a pressões para amansar a Lei de Responsabilidade Fiscal e não permitir que governantes gastem mais do que podem. Sancionada no governo FHC, essa lei é parte integrante da reforma política, embora a vinculação não tenha sido explicitada na época da sua aprovação.

Para aprovar as reformas e outros projetos do Executivo no Congresso é fundamental que a nova presidente resista à prática do toma lá dá cá, ao jogo de chantagem dos parlamentares. Se ceder na primeira vez, a chantagem se espalha e Dilma pode virar refém de uma prática que Lula e o mensalão fartamente provaram ser desastrosa para o País e para quem o governa. Não só porque avança sobre o dinheiro do contribuinte. Também porque vender dificuldades para obter facilidades leva tempo, deforma o conteúdo das matérias, atrasa sua tramitação e o Executivo acaba desistindo de projetos essenciais para o País. Foi o que aconteceu com Lula, que desistiu das reformas tributária, trabalhista, sindical e previdenciária, causando um lamentável atraso de oito anos.

Dilma acaba de escolher seu ministério, contemplando os dez partidos políticos da aliança que a elegeu. Em regimes democráticos, de representação partidária, essa prática é legítima, desde que os escolhidos tenham o passado limpo e agreguem competência e preparo técnico ao cargo. Em relação à maioria dos ministros escolhidos, tais critérios não foram, nem minimamente, observados. Mas está feito, vá lá. Agora ela vai enfrentar uma segunda etapa de pressões para nomear políticos em diretorias de estatais, agências reguladoras, órgãos públicos em Brasília e nos Estados e cargos no segundo, terceiro e quarto escalões.

Aí já é diferente. Mais uma vez, Dilma precisa resistir com força, mostrar-se irredutível. Para administrar com eficiência o bem público, o governante não pode entregar cargos técnicos, que executam decisões e projetos de governo, a políticos fisiológicos, cujo interesse é unicamente extrair do cargo vantagens para seu partido. Como julga que nunca erra, Lula recusou-se a aprender com erros. Mas Dilma deve ter na memória os últimos oito anos de enorme desgaste político com os eleitores e fracasso de gestão em estatais e órgãos públicos por Lula ter nomeado políticos oportunistas para cargos técnicos.

Esse é o arcabouço político e humano com que Dilma vai trabalhar nos próximos quatro anos. É imperfeito, sujeito a pressões políticas, lobbies e chantagens. Portanto, ela deve ficar permanentemente atenta para três objetivos: esgotar o calor das urnas para aprovar matérias difíceis - e de interesse do País - nos primeiros 18 meses de mandato; não nomear políticos incompetentes para funções técnicas; e adotar, desde já, por princípio não ceder a chantagens de parlamentares.

A agenda. Na campanha Dilma evitou falar das reformas (política, tributária, trabalhista, sindical e previdenciária). É um tema politicamente complicado para ser defendido em momentos de caça aos votos. Mas Dilma sabe que elas são tão essenciais quanto difíceis de passar no Congresso. Daí o esforço para tentar aprová-las nos primeiros 18 meses de governo. Além delas, fazem parte da agenda de curto prazo as microrreformas - dirigidas a apoiar o crescimento de longo prazo, criar ambientes propícios a novos negócios e a aumentar a eficiência do mercado. Eliminar papelada, encurtar prazos, facilitar, enfim, a burocracia para a abertura de empresas são providências bem-vindas para estimular novos investimentos, gerar emprego e renda. Correndo por fora desta agenda, a nova presidente vai enfrentar o complicado e minucioso trabalho de administrar o cotidiano da economia.

Dilma assume num momento em que a economia está mais aquecida do que deveria, pressionando a alta da inflação - o Banco Central (BC) elevou sua projeção para 2011 de 4,6% para 5% - e gerando expectativa de o BC voltar a elevar a taxa Selic na próxima reunião do Copom. Se quiser evitar isso, ela terá de endurecer no desempenho fiscal, cortar despesas, suspender contratações, frear a ambição do PT por cargos, recusar pressões e lobbies por gastos de toda ordem e, se necessário, cortar investimentos do PAC. Desequilibrado em razão do desajuste cambial e da crise nos países ricos, o déficit externo está em plena ascensão, devendo fechar 2010 em US$ 49 bilhões e, segundo o BC, em US$ 64 bilhões em 2011 - 31% maior do que este ano. Esse é um problema delicado que requer atenção e ação para não se agravar.

A boa notícia é que a maioria das empresas tem planos de investir em 2011, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Mais investimento, mais emprego, mais dinheiro circulando, mais receita tributária. E é com esse aumento de receita que Dilma deveria organizar um programa de pagamento gradual da dívida e de redução a zero do déficit público nominal.

No mais, boa sorte ao Brasil e à gestão da nova presidente. E um feliz ano-novo aos queridos leitores.

JORNALISTA, É PROFESSORA DE COMUNICAÇÃO DA PUC-RIO E-MAIL: [email protected] 

Já segue nosso Canal oficial no WhatsApp? Clique Aqui para receber em primeira mão as principais notícias do agronegócio
Tags:
Fonte:
O Estado de S. Paulo

RECEBA NOSSAS NOTÍCIAS DE DESTAQUE NO SEU E-MAIL CADASTRE-SE NA NOSSA NEWSLETTER

Ao continuar com o cadastro, você concorda com nosso Termo de Privacidade e Consentimento e a Política de Privacidade.

0 comentário