Brasil, um país que continua fora dos trilhos
Todo ano, na temporada de feriados que emendam Natal, fim de ano e ressaca de
verão que se estica até o Carnaval, o Brasil mostra escancaradamente quão
extrema é sua vulnerabilidade em deslocar viajantes. Aviões lotados, aeroportos
entupidos, rodoviárias botando gente pelo ladrão, estradas coalhadas de carros e
ônibus mostram que pelo menos nas regiões em que o País mais cresceu - Sul e
Sudeste -, além de insuficientes, os meios de locomoção estão banidos da opção
ferroviária como alternativa para aliviar a tensão e o estresse dos passageiros.
O trem de passageiro leva vantagens sobre a rodovia. Com a tecnologia atual,
de controles automatizados e eletrônicos, a possibilidade de acidentes é remota.
Quando em via dupla, a segurança e a fluidez melhoram substancialmente. Além
disso, sem solavancos, andar sobre trilhos transforma em prazer o ato de viajar.
Apesar de vantagens, tem sido entediante nas últimas décadas falar em trens
de passageiros nos percursos de médias e longas distâncias. Nos anos 70, com as
ferrovias estatizadas, trens e linhas já se mostravam decadentes demais para
competir em conforto e rapidez com carros e ônibus.
Durante anos ouvi recorrentemente um lugar comum de que o trem foi
intencionalmente abandonado por governantes, principalmente por Juscelino
Kubitschek, em favor da indústria automobilística que nascia no País a partir do
final dos anos 50.
Feito meninos travessos, temos costume arraigado de transferir
responsabilidades para justificar atos inconsequentes e irresponsáveis no trato
das coisas públicas. O que ocorreu, isto sim, com as ferrovias foi um inchaço
desmedido das estruturas a partir da estatização das companhias. Instalou-se um
verdadeiro deus-nos-acuda. A Rede Ferroviária Federal virou um paquiderme
inadiministrável com uma folha superior a 100 mil empregados. Nem governos
militares, autoritários e pretensamente favoráveis às ferrovias, foram capazes
de colocar o Brasil nos trilhos.
Lembro do projeto da Ferrovia do Aço, lançado nos anos 70, em pleno regime
militar. Batizada de ferrovia de mil dias - prazo estipulado para seu término -,
a obra foi entregue muito tempo depois, e assim mesmo inconclusa e não
eletrificada como previa o esboço. Feito ação entre amigos, a obra, repartida
entre várias empreiteiras, carecia de um projeto final de engenharia. E era
faraônica - dos 900 quilômetros originais, pelo menos metade era de pontes e
viadutos. Foi idealizada para ter raio de curva de 900 metros, bitola larga e
outras especificações próprias para receber passageiros que jamais tiveram
acesso aos seus trilhos.
Quem vê trens de passageiros na Europa, chiques, elegantes, pergunta: por que
no Brasil não temos esse direito?
Dá para contar nos dedos as ferrovias brasileiras que oferecem trens de
passageiros. Uma dessas exceções é a Cia. Vale do Rio Doce, que mantém trens nas
linhas de Carajás e Vitória a Minas. No Sul e Sudeste, onde estão concentrados
maciçamente o PIB e a população, trem de passageiro em média e longa distâncias
inexiste.
Na privatização das ferrovias, na segunda metade dos anos 90, as empresas que
assumiram as linhas deixaram claro desde o início que passageiro estava excluído
do negócio. Só carga interessa aos operadores privados. De tempos para cá tem se
falado demasiadamente em trem-bala para ligar por trilhos o Rio de Janeiro a São
Paulo.
A operadora que privatizou o trecho, a MRS Logística, tem contrato que vai
além de 2020 e, ao que consta, sua estrutura é para transportar cargas. Nem
maquinista é passageiro, chamado que é de tripulante.
Nas discussões preliminares sobre o trem-bala nunca vi mencionado como se
ajeitaria a questão das desapropriações de tal grandeza em áreas tão valorizadas
como as que ligam os dois estados. Alguém diz que para se evitarem indesejáveis
e perigosas passagens de nível, uma solução seriam vias férreas elevadas sobre
pilastras.
Seja como for, o Brasil precisa da opção ferroviária para passageiros. Mas,
para isso, requer projetos de infra-estrutura que caibam nos orçamentos, que,
como se sabe, atavicamente padecem de inanição.
Fonte: Revista Ferroviária