No ESTADÃO: "A difícil equação", por Denis Lerrer Rosenfield

Publicado em 28/11/2016 14:30
A Nação clama por moralidade pública, a classe política está brincando com fogo (em O Estado de S. Paulo)

A Lava Jato segue o seu inexorável curso. É como um cataclismo que se abate sobre a classe política. As delações da Odebrecht, acompanhadas de suas respectivas provas materiais, atingirão a base parlamentar do governo e muito provavelmente muitos de seus ministros. Governar será ainda mais difícil num contexto de devastação da classe política.

Entretanto, o País foi praticamente levado ao abismo pelos governos petistas, com o PIB caindo vertiginosamente, o desemprego alcançando 12 milhões de pessoas, o que equivale a 46 milhões, considerando quatro pessoas por família. As expectativas da população em geral são muito ruins. O impasse é grande.

Urge, portanto, que o governo tome medidas para tirar o País do buraco, o que pressupõe a aprovação da PEC do Teto do gasto público, a reforma da Previdência e a modernização da legislação trabalhista. Sem isso o País continuará patinando no marasmo, se não na decadência.

O problema que se apresenta consiste no timing da aprovação dessas reformas, tendo como pano de fundo o avanço da Lava Jato e o vazamento de suas investigações. As reformas devem ter prioridade, sob o risco de serem inviabilizadas. O que está em questão é o País.

A difícil equação está precisamente nessa correlação. Quanto antes essas reformas forem aprovadas, menor impacto terá a Lava Jato sobre elas; e quanto mais tardarem, mais a Lava Jato poderá atingi-las, até torná-las inviáveis, dada a desordem política daí resultante.

Como se não bastasse, os fatos que levaram à demissão do ex-ministro Geddel expõem outro flanco delicado do governo ao exibirem as complexas relações entre moral e política, sobretudo à luz do cenário atual. Suas repercussões são tanto mais graves por ocorrerem neste momento de devastação da classe política pelas operações da Lava Jato, quando a sociedade civil clama por moralidade pública.

A classe política e setores do governo parecem não ter compreendido que a sociedade brasileira já não admite a política cínica voltada para o atendimento particular de políticos e corporações dos mais diferentes tipos, sejam do funcionalismo público, sejam das corporações patronais e sindicais.

Os interesses corporativos não se podem sobrepor aos do Brasil. O Judiciário e o Ministério Público, que tão relevantes serviços têm prestado ao País, não podem, por exemplo, neste momento de crise aguda, exigir aumentos salariais e variados benefícios enquanto outros não têm o que comer.

Exige-se, hoje, uma política que siga padrões de moralidade pública. Exige-se do novo governo que ele se diferencie do anterior. Se isso não for feito, poderá ser fortalecida a percepção de que a mudança seria apenas mais do mesmo. O País poderia ser paralisado.

O fosso entre a sociedade, de um lado, e a classe política e o governo, de outro, só tende a aumentar se as brigas da corte primarem sobre o bem coletivo. Difunde-se a ideia de que o governo está se dissociando da sociedade.

Os políticos e as corporações continuam num jogo particular, pequeno, como se o precipício não estivesse logo ali. Há um ensimesmamento extremamente perigoso, pois nasce da falta de consciência da gravidade da crise.

A Nação clama por transformações e por um esforço coletivo, devendo a classe política e o governo tomar essa vanguarda. Ora, essa liderança não está sendo exercida a contento, os interesses menores prevalecem sobre os maiores.

Mostra disso está no projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados com o intuito de anistiar os crimes do caixa 2. A insensibilidade parlamentar é total, bem como sua falta de senso de oportunidade. A sociedade clama pela punição dos mais diferentes tipos de crime, enquanto a classe política procura preventivamente isentar-se dessa responsabilidade.

Mesmo que devamos distinguir entre os crimes eleitorais e os de corrupção e propina, o momento não poderia ser mais inadequado. Aos olhos da sociedade aparece essa iniciativa como uma anistia antecipada, uma precaução diante dos desdobramentos da Lava Jato.

A classe política está brincando com fogo. O povo foi às ruas, em especial a classe média, para protestar contra um governo corrupto, que se caracterizou por práticas ilícitas e imorais. O mensalão e o petrolão mostraram isso à saciedade.

As manifestações populares disseram não ao governo Dilma e indiretamente sim ao então vice-presidente Michel Temer, na expectativa de que este se mostrasse diferente do ponto de vista da moralidade. A sua biografia o respalda.

Agora poderão voltar essas manifestações enquanto expressão de aguda indignação moral, podendo elas cair no colo do próprio presidente. Seria o pior dos cenários. Deve ele, portanto, dissociar-se publicamente desse projeto de anistia, dando garantias, já, de que não o sancionará caso aprovado.

Acrescente-se que essas manifestações, caso venham a ser realizadas, teriam uma face nitidamente social, com os desempregados também delas participando. Expressariam toda a sua indignação e seu desamparo.

Juízes poderiam também juntar-se a essas manifestações, protestando contra o projeto de lei da anistia aos crimes do caixa 2, respaldados por movimentos sociais como o MBL e o Vem pra Rua.

A demissão do ministro Geddel tira um pouco o fogo do caldeirão, porém esse indigesto caldo de cultura permanece. O governo deverá avançar tanto nas reformas quanto moralmente, escutando a sociedade e apoiando-se nela. A pauta do governo não pode ser um apartamento na Bahia.

O governo deverá mostrar mais claramente que o seu diferencial consiste em ser moralmente diferente do anterior, o que exige uma reformulação das práticas políticas correntes. Não há mais tergiversação possível. É o futuro do País que está em jogo.

Gargalhadas demoníacas e tirânicas, por ROBERTO ROMANO

Uma foto possui a qualidade de falar aos olhos e à mente. Ela mostra o real sentido da palavra “evidência”: o que aparece de modo insofismável. No século 20 algumas fotografias mostraram ao mundo fatos graves e ridículos, terríveis e comoventes. Recordo algumas delas: a menina que foge do napalm, no Vietnã; o beijo dos enamorados após a 2.ª Guerra Mundial, nos EUA; o vestido de Marilyn Monroe que se ergue por virtude do vento; a figura de Trotsky cortada na foto por ordem de Stalin; o horror de corpos quase mortos nos campos nazistas. Tais imagens testemunham a brutalidade humana, mas também exibem instantes de frágil ternura, inteligência ou estupidez.

Em formas televisivas ou fílmicas, além da evidência existe a vantagem das figuras em movimento, inclusive e sobretudo no campo da face. Esta última tem sido um meio de estudos filosóficos, artísticos (especialmente no teatro), políticos importantes. Em momentos pouco felizes da ciência, como nas teses avançadas por Lombroso, a cara revelaria o caráter das pessoas, suas mazelas escondidas. Em outro sentido, Diderot, pai das Luzes democráticas, utilizou muito o livro de Le Brun sobre as paixões reveladas na face. Charles Darwin tem um contributo relevante para o tema. As tentativas de velar a linguagem do rosto, desde a mais remota vida em sociedade, encontram nas máscaras o seu grande instrumento. Um capítulo essencial do clássicoMassa e Poder traz análises profundas de Elias Canetti sobre a maquiavélica dissimulação permitida ao poderoso mascarado.

Os bisonhos e incultos políticos brasileiros não controlam a técnica do mascaramento. A sua maioria exibe sem nenhum pudor o que lhe vai nas entranhas, confiante na impunidade trazida pelo indecente privilégio de foro.

No dia 23 de novembro último, O Estado de S. Pauloapresentou na primeira página uma foto estarrecedora. Deputados riem às escâncaras em companhia do então ministro Geddel Vieira Lima. Este proclamara que “não havia nada de imoral” em conversar sobre assuntos privados com um colega, em proveito próprio. O quadro exibido no jornal mostra explícito deboche das leis e do povo soberano. Temos nele uma visão completa das pessoas que dominam nossas instituições políticas. Segundo Milan Kundera, “o riso é o domínio do diabo”. Nem todo riso, no entanto. Existe, diz ainda o romancista, o riso dos anjos, movido pela admiração da bela ordem dada ao universo pelo ser divino. A gargalhada demoníaca mostra a quebra daquele ordenamento, o absurdo entronizado nas coisas mundanas (O Livro do Riso e do Esquecimento). A pândega dos deputados, a zombaria e o desprezo pelos cidadãos comuns, traz o selo do Coisa Ruim, do Não-sei-que-diga. Renan Calheiros piorou a dose ao reduzir o episódio a um caso de hermenêutica. Caolha como todas as demais por ele efetivadas, sobretudo no plano da ética pública.

Certa feita a imprensa trouxe notícias bem fundadas sobre o uso, na Câmara dos Deputados, de verbas para o bem-estar de prefeitos e hóspedes de parlamentares. Entre as comodidades e os serviços, a prostituição. Na semana em que a denúncia invadiu páginas de jornais e telas da TV, apareceu outra novidade: a Mesa da Câmara providenciava nova leva de cargos em comissão para servir aos parlamentares. Sem apurar o primeiro escândalo, veio o outro, urdido em silêncio. Um jornalista da TV Record entrevistou Inocêncio de Oliveira. Este negou, rindo muito, a existência de qualquer ato visando a criar cargos. Deu adeus aos brasileiros, virou as costas e seguiu adiante, rindo. Na tela, apareceu o documento oficial criando os cargos.

A mentira e o deboche suscitaram minha indignação. Escrevi um artigo intitulado, justamente, O prostíbulo risonho. Ele me valeu muito ódio dos chamados representantes do povo. Um deles me processou, com apoio de seus iguais. Na oitiva das testemunhas, um auxiliar do acusador assim falou ao jovem magistrado: “Gosto muito do professor Roberto Romano. Mas ele abusou da escrita. Imagine, Excelência, que o professor afirmou existir corrupção no Congresso Nacional!”. Nem o juiz pôde conter o riso, agora angélico.

As gargalhadas dos “nossos representantes” seriam apenas ridículas se não gerassem lágrimas de famílias brasileiras aos milhares A corrupção retira da economia, das políticas públicas, da vida nacional bilhões para lucro dos que deveriam zelar pelo bem comum. Desde a Grécia, o pensamento ético e jurídico ocidental define a prática de usar os bens coletivos em proveito próprio como tirania. O governante correto “guarda a piedade, a justiça, a fé. O outro não tem nem Deus, nem fé, nem lei. Um tudo faz para servir ao bem público e manutenção dos governados. Mas o outro tudo faz para seu lucro particular, vingança ou prazer. Um se esforça por enriquecer seus governados, o outro só eleva sua casa sobre a ruína dos dirigidos (…) um se alegra ao ser avisado em toda liberdade, e sabiamente corrigido, quando falha. O outro não suporta o homem grave, livre e virtuoso (…) um busca pessoas de bem para os cargos públicos. Mas o outro só emprega os piores ladrões para os utilizar como esponjas” (Jean Bodin, Os Seis Livros da República, capítulo IV).

Em A República, ao desenhar a tirania Platão afirma que o péssimo governante realiza uma purga invertida no corpo político: expulsa os cidadãos livres e bons e usa os salafrários como sua base política. Heinrich Heine, poeta lúcido, disse certa feita: “Quando penso na Alemanha, à noite, choro”.

Termino citando um baiano que merece respeito. Dada a desfaçatez exibida na política brasileira, Castro Alves retomaria seus versos candentes: “Mas é infâmia demais! (...) Da etérea plaga/ Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!/ Andrada! arranca esse pendão dos ares!/ Colombo! fecha a porta dos teus mares!”.

Autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão', Editora Perspectiva

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Fonte:
O Estado de S. Paulo

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