EDITORIAL DO ESTADÃO: O desastre em números

Publicado em 18/05/2014 11:03
em O Estado de S.Paulo, edição deste domingo

O falatório triunfal da presidente Dilma Rousseff, empenhada cada vez mais em fazer campanha e cada vez menos em governar, foi desmentido mais uma vez por números oficiais. A economia continua emperrada e nem a repetição de um resultado pífio como o do ano passado está garantido, segundo o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), considerado uma prévia do Produto Interno Bruto (PIB). A atividade encolheu 0,11% de fevereiro para março e no primeiro trimestre foi apenas 0,3% maior que nos últimos três meses de 2013. Esses e outros dados apontam um começo de ano muito ruim, com indústria em ritmo de tartaruga, inflação elevada, contas externas em mau estado e muita desconfiança entre empresários, investidores e consumidores.

 

Em março, a atividade foi 0,27% mais alta que a de março de 2013, na série depurada de efeitos sazonais. A média do trimestre foi 1,02% maior que a de janeiro a março do ano passado. Em 12 meses o crescimento acumulado ficou em 2,11%. Além de muito fracos, os números apontam uma desaceleração iniciada em novembro.

Com base no material do BC, consultorias e departamentos econômicos de bancos tentaram estimar, já na manhã de sexta-feira, a evolução do PIB nos primeiros três meses deste ano. Os primeiros resultados ficaram entre crescimento zero e um avanço muito pequeno. Nesta altura, mesmo as taxas de expansão projetadas para o ano, geralmente abaixo de 2%, parecem otimistas, segundo técnicos do mercado.

Na segunda-feira, o BC havia divulgado a mediana das projeções coletadas na sexta-feira anterior na pesquisa Focus, uma consulta semanal a cerca de cem consultorias e instituições financeiras. Essa mediana havia subido de 1,63% para 1,69%. Apesar da ligeira elevação, continuava abaixo da estimativa publicada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) na segunda semana de abril: 1,8%.

Projeções são sujeitas a erros e apenas para especulação vale a pena apostar neste ou naquele número, quando as diferenças, para todos os demais efeitos, são pouco relevantes. Neste caso, o ponto importante parece muito claro: nenhuma estimativa, nem mesmo do governo, aponta para um desempenho econômico muito melhor que o do ano passado.

Pela primeira estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o PIB cresceu 2,3% em 2013. A segunda estimativa deverá refletir, entre outros fatores, o novo critério de cálculo da produção industrial, com universo maior e nova ponderação dos subsetores. Com essa mudança, o aumento do PIB da indústria passou de 1,2% para 2,3%.

Essa alteração, tomada isoladamente, dificilmente levará o cálculo total do PIB a um resultado muito melhor que o já divulgado. Em resumo, os dados oficiais do ano passado continuarão ruins - ou muito ruins, se comparados com os de outros países emergentes - e os números deste ano só serão melhores que os de 2o13 se algum fator especial turbinar a produção nos meses restantes. Nenhum fenômeno desse tipo parece ter ocorrido a partir de abril.

Até o estímulo ao consumo, linha principal da política econômica nos últimos anos, parece perder eficácia. O crédito continua em expansão, mas em ritmo mais lento que nos anos anteriores e os juros estão mais altos. Além disso, a redução do estímulo fiscal seletivo já se reflete no menor dinamismo da indústria automobilística. Como complemento, a inflação persistente afeta o poder de compra das famílias e reduz o entusiasmo dos consumidores. Em março, o comércio varejista restrito vendeu 1,1% menos que um ano antes. O comércio ampliado (com inclusão de veículos, autopeças e material de construção) ficou 5,7% abaixo do nível de março de 2013. O resultado é explicável principalmente pelo setor de veículos e componentes, com vendas 16% inferiores às do mesmo mês do ano anterior.

Esse quadro é consequência previsível de uma política centrada no estímulo ao consumo, sem preocupação com a produtividade e com inegável tolerância à inflação. Até agora, a reação do governo tem consistido em prometer mais do mesmo.

Minucioso preparo do desastre

As causas do espantoso encarecimento da Refinaria Abreu e Lima, que a Petrobrás está concluindo com grande atraso em Pernambuco, não foram, nem poderiam ter sido, meras casualidades, decisões baseadas em critérios equivocados ou outros fatores inesperados que eventualmente oneram projetos de grande porte. O que produziu o aumento de pelo menos dez vezes do custo desse empreendimento - de uma estimativa inicial de cerca de US$ 2 bilhões para mais de US$ 20 bilhões efetivamente despendidos - foi uma sequência de decisões deliberadas, formalizadas em documentos oficiais e avalizadas por seus responsáveis.

As 123 atas das reuniões do Conselho de Administração da refinaria realizadas entre março de 2008 e dezembro de 2013 - às quais o jornal Valor teve acesso e sobre as quais publicou (em 15/3) extensa reportagem - não deixam dúvidas quanto à maneira desleixada como foram autorizadas despesas bilionárias, sem haver sequer estudos prévios de viabilidade financeira, econômica e técnica, indispensáveis em projetos dessas dimensões.

Não é simples coincidência o fato de, no período em que foram tomadas decisões desastrosas para o País, o presidente do conselho ter sido o notório ex-diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa, preso desde março por seus vínculos com a Operação Lava Jato, que apura as ações de uma organização acusada de lavagem de R$ 10 bilhões. Também não deve ser coincidência o fato de uma das empresas beneficiadas por revisões de contratos para construção da refinaria ter sido a Jaraguá Empreendimentos Industriais, também sob investigação na Operação Lava Jato e listada entre as que doaram dinheiro para o PT em 2010.

Por tudo que já se sabe sobre ela, de sua concepção ao modo como vem sendo construída, a Refinaria Abreu e Lima parece um modelo do governo petista. O empreendimento foi anunciado pelo ex-presidente Lula como a primeira grande parceria com seu aliado e companheiro ideológico Hugo Chávez, da Venezuela. Era mais um gesto para inflar as ambições políticas do ex-presidente brasileiro, que queria estender sua influência para outros países latino-americanos. Era previsível que, com o agravamento da crise venezuelana em decorrência dos erros da política bolivariana de Chávez, o parceiro lulista não honraria sua parte - o que só foi admitido pelo governo Dilma no ano passado.

Além do erro político de sua concepção, Abreu e Lima foi submetida por seus dirigentes a muitos outros, alguns dos quais, se analisados por conselheiros e auditores efetivamente independentes, talvez caracterizassem gestão temerária.

Contratos de serviços de terraplenagem foram assinados em 2007 sem que houvesse nenhum projeto de execução, o que propiciou ao consórcio contratado a oportunidade de reclamar um aditamento, com o qual concordou a empresa constituída pela Petrobrás para a construção da refinaria. Esse aditamento foi questionado por auditores do Tribunal de Contas da União (TCU), que ainda não decidiu sobre o caso.

Como mostram as atas das reuniões do Conselho de Administração, um empréstimo de R$ 10,9 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi tomado pouco depois de constituída formalmente a empresa que administraria a construção, mas havendo até então apenas um "projeto básico". Não foram informadas as garantias oferecidas ao banco pela empresa, que foi absorvida no ano passado por sua controladora, a Petrobrás, após a formalização da saída do governo venezuelano do projeto.

Só em janeiro de 2010 o Conselho de Administração examinou o estudo de viabilidade econômico-financeira de Abreu e Lima, peça indispensável para um administrador prudente e cauteloso - como se imagina devessem ser os conselheiros da refinaria - decidir sobre a contratação de obras. Então, o conselho já havia autorizado não apenas a assinatura de contratos bilionários, mas até o aditamento de outros, entre os quais o da citada Jaraguá. O desastre financeiro de Abreu e Lima já estava em pleno andamento.

A Copa e a avenida

  • O Estado de S.Paulo
     

No dia 17 de junho do ano passado, 230 mil pessoas saíram às ruas de 12 capitais brasileiras para dar vazão, como se disse à época, à vontade de falar - contra o aumento das passagens de ônibus, o descalabro dos serviços públicos, a indiferença dos governantes diante da dureza do cotidiano para a grande maioria da população, o colapso da representatividade do sistema político e a gastança com a Copa. Aquela não foi a primeira nem a derradeira das manifestações tidas como prova de que "o gigante acordou", na jubilosa avaliação dos seus participantes mais otimistas.

 

Onze meses menos dois dias depois, foram apenas 21 mil as pessoas, desigualmente distribuídas por 7 capitais, que se animaram a dar visibilidade a um rol de protestos e reivindicações em cujo centro estaria a denúncia das "injustiças da Copa". A causa, porém, não mobilizou mais de 5,5 mil ativistas, concentrados em Belo Horizonte (2 mil), Rio e São Paulo (1,5 mil em cada uma delas). Aqui, o dia foi dos aproximadamente 8 mil professores municipais, em quilométrica passeata por melhores salários, e dos 6 mil sem-teto que promoveram concentrações e bloqueios em seis áreas da cidade.

Metalúrgicos circularam por cinco outros pontos, enquanto umas poucas centenas de ex-funcionários de uma associação privada também fizeram a sua parte para o intermitente bloqueio da Avenida Paulista, o coração da capital. Está claro que muita coisa se transformou de um ano para cá em matéria de expressão pública seja lá de que bandeira for. Não só o número de manifestantes ficou reduzido a uma fração daqueles das jornadas de junho - que chegaram a ser chamadas "históricas" -, como, principalmente, mudou o seu perfil e mudaram as suas palavras de ordem.

O que havia então era um desabafo em grande medida espontâneo de uma massa composta na esmagadora maioria por jovens em defesa do interesse coletivo desatendido por um Estado pronto a gastar uma fortuna com o Mundial, mas avaro e negligente quando se trata de investir na qualidade de vida do povo, cobrando o que seria demais dos usuários de transporte coletivo e respeitando de menos os pacientes do SUS. O que prevalece agora, a julgar pelo que se acabou de ver, são setores organizados em defesa de interesses delimitados (acesso à moradia, por exemplo) ou corporações profissionais (como professores) com suas periódicas demandas por aumento salarial.

Do espírito de junho, como se queira julgá-lo, ficaram os minoritários protestos contra a Copa - com o seu escasso senso de realidade e elevada propensão para o confronto e o vandalismo. Se agora servem quase só para dar carona a pressões de terceiros por suas cobranças próprias, é improvável que consigam recobrar força durante o campeonato a ponto de provocar os temidos distúrbios de repercussão internacional. Como diz a presidente Dilma Rousseff, "na hora de a onça beber água este país vai endoidar". Até os líderes dos sem-teto falam em "um protesto a cada semana até a Copa".

De qualquer modo, ela virá e se irá. Mas permanecerá - ou, antes, poderá ficar pior - a truculência com que, sejam multidões ou grupelhos, os interessados em promover tais ou quais verdades têm se apoderado do sempre concorrido espaço público nos pontos nevrálgicos das metrópoles brasileiras, cerceando o direito de ir e vir que a Constituição a todos assegura. Manifestações pacíficas são legítimas; são unha e carne do sistema democrático. Mas a liberdade coletiva de expressão não pode ser exercida ao bel-prazer de quem quer que pretenda se exprimir a céu aberto.

A competição pelo uso da rua e as tensões que disso decorrem são inerente ao mundo urbano. Tornam imprescindível, pois, a intervenção do poder público para regulamentar, no tempo e no espaço, o exercício do direito de manifestação para que não tolha além da conta os afazeres e o deslocamento dos demais. A omissão das autoridades em face da tomada da Paulista é inaceitável: nenhum dos sucessivos grupos que transtornaram a mais importante via paulistana, em cujas proximidades, aliás, funcionam numerosos hospitais, precisou pedir autorização para se escarrapachar, literalmente, na avenida. Foi uma violência consentida.

 

Um país diferente e incrível

Gaudêncio Torquato*

 
Uma no cravo: "Não apareça pensando que o Brasil é a Alemanha". Outra na ferradura: "O Brasil é um país incrível". Os dois conceitos, expressos pela mesma boca em menos de uma semana, mostram como a verdade, por estas plagas, é tão relativa quanto as projeções que os brasileiros fazem do desempenho da seleção canarinho na Copa. O francês Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, tem sido um dos melhores intérpretes do modus faciendi nacional, ora criticando a lentidão das obras nas 12 arenas esportivas que sediarão os jogos, ora alertando turistas contra a insegurança e a precária infraestrutura: "Na Alemanha você pode dormir no seu carro, mas você não pode fazer isso (no Brasil). Não apareça pensando que é fácil se locomover"; ora incentivando as torcidas: "Podem esperar um país que tem música, samba e uma série de coisas que o tornam único no mundo". Há alguns meses, esse cavaleiro andante já prometera "dar um chute no traseiro do Brasil". Desculpas esfarrapadas não desfizeram a impressão de que respingos da fala toldaram a bandeira de nossa soberania. Há tempos, porém, florescem por aqui a leniência, a cultura do "deixa pra lá", a mania de esconder sujeira debaixo do tapete.

O fato é que o País tem decaído no ranking da reputação internacional. A própria organização da Copa tem contribuído para as manchas que se acumulam na imagem brasileira, decorrentes da torrente expressiva em torno de construções inacabadas em quase todos os setores da infraestrutura, nas frentes da mobilidade urbana, nas áreas de portos e aeroportos e nas obras inconclusas dos estádios, principalmente em São Paulo, Curitiba e Cuiabá. Debaixo dessa aparente teia que une os fios da morosidade, da burocracia, da falta de planejamento, de alterações de projetos, improvisação e visões díspares, Valcke deve se sentir confortável para, vez ou outra, apertar os calos das autoridades, possivelmente imaginando que seu conterrâneo, Charles de Gaulle, teria mesmo declarado que "o Brasil não é um país sério" (a bem da verdade, o general nunca disse isso. O autor foi Carlos Alves de Souza Filho, genro do ex-presidente Artur Bernardes, na época em que era embaixador na França, entre 1956 e 1964. A referência teve como motivo a Guerra da Lagosta, envolvendo a captura de lagostas por embarcações francesas).

Também é fato que o País não tem reagido no mesmo tom às ferinas cutucadas que recebe, ou por não desejar pôr lenha na fogueira, preferindo driblar as controvérsias com a diplomática crença do ministro do Esporte, Aldo Rebelo, para quem "o objetivo comum do Brasil e da Fifa é a realização da melhor Copa do Mundo de todos os tempos", ou sob o argumento de que "somos a sexta economia do mundo, temos protagonismo importante nas relações internacionais e já fizemos muita coisa mais importante do que organizar uma Copa de futebol".

Nesse ponto, o ministro saltou além das pernas. Já não somos tão protagonistas como antes. Há cinco anos, o então presidente Luiz Inácio, por ocasião da reunião do G-20 em Londres, era cumprimentado efusivamente por Barack Obama com o chiste amistoso: "Este é o cara". O Brasil orgulhava-se de ter liquidado seu débito com o FMI e exibir um dos mais eficazes programas de distribuição de renda do planeta. A situação, hoje, mostra o País deixando de ser a sexta economia - posição que ostentou apenas por alguns meses em 2012 -, devendo encolher US$ 2,1 trilhões este ano, para ocupar o 9.º lugar, atrás da Índia e da Rússia, membros dos Brics.

O brilho com que o País se apresentava nos foros internacionais ganha densa camada de pó. A fosforescência que iluminava sua aura parece se apagar, engolfada na poeira dos movimentos de rua e esmaecida pelo rufar de escândalos, denúncias de corrupção e ecos retumbantes da Ação Penal 470, tudo a indicar altas doses de efervescência e disposição de grupos para desfraldar as bandeiras pintadas de demandas.

Intensificam-se os movimentos que, esta semana, foram às ruas em cerca de 50 cidades; até policiais federais cruzam os braços. Pode-se compreender o animus animandi da sociedade quando se abrem as cortinas eleitorais e as portas dos estádios que abrigarão o maior evento esportivo mundial. Fica claro que parcela ponderável das correntes que gritam palavras de ordem quer aproveitar os ventos favoráveis do clima pré-Copa.

Os ecos tornam-se mais fortes, as demandas, mais audíveis, e os ouvidos dos atores políticos, mais atenciosos. A algaravia se estabelece, com troca de sinais entre concorrentes e adversários, cada qual imprimindo força ao discurso, sem compromisso com coerência ou consistência ideológica. O Brasil é mesmo o país do vice-versa. Quem pregava, anteontem, a lição do medo? O PSDB da era Fernando Henrique. Deu certo. Quem pregava, ontem, a lição da esperança contra o medo? O PT da era Lula. Deu certo. Hoje, petistas usam o medo e tucanos, a esperança, como alavanca das urnas. Nada como um dia após o outro para ver a troca de posição entre os opostos. A ética? Ora, uma questão de ponto de vista. O trigo de um é o joio do outro. Com os polos se invertendo, a paisagem institucional se vê tomada por uma crise de autoridade, perceptível em atos de vandalismo, invasões de espaços e devastação de patrimônios, a denotar estado de anomia.

Por fim, a inferência. Seja qual for o desempenho da seleção brasileira no tão aguardado evento, uma coisa parece certa: o Brasil não será o mesmo. O tal "legado da Copa" suscitará polêmicas: algumas arenas se transformarão em elefantes brancos? Haverá recursos para sua manutenção? À luz da arquitetura futurista dos estádios, como serão vistas escolas, hospitais, vias de acesso no entorno? A precariedade do Brasil em desmanche não contrastará com a exuberância do Brasil monumental? Jérôme Valcke, de longe, mas pertinho dos cofres locupletados da Fifa, deverá abrir um sorriso: "Que Brasil incrível; o passo maior que as pernas vai lhe dar dor de cabeça".

JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO TWITTER@GAUDTORQUATO
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Fonte:
O Estado de S. Paulo

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