‘A presidente eleita já não merece a leniência do sarcasmo que reservávamos à candidata’

Publicado em 07/11/2010 18:32

O coadjuvante do espetáculo do cinismo volta ao palco como papagaio de pirata

Três convidados e três sem-ingresso dividem com Dilma Roussef a foto que mostra o começo do primeiro discurso como presidente eleita. Por solicitação da candidata vitoriosa, posam para a posteridade o vice Michel Temer, o companheiro José Eduardo Dutra e o acompanhante José Eduardo Cardozo. Os outros são penetras. Valeram-se de empurrões, cotoveladas e pontapés para alojar-se no espaço sempre diminuto reservado a essa maravilha da fauna política nativa: o papagaio de pirata.

Infiltrada entre Temer e Dilma, a prefeita Luizianne Lins capricha na expressão severa de quem veio de Fortaleza para testemunhar a leitura dos Dez Mandamentos pela voz de Moisés. Espremidas no fundo, há duas metades de rosto. A face esquerda pertence a Magno Malta, senador reeleito pelo PR capixaba. Pastor evangélico e pecador juramentado, ficou nacionalmente conhecido no escândalo dos sanguessugas. O dono da face direita é o enigma ainda por decifrar: se só é candidato a qualquer papel em qualquer novela de qualquer emissora, o que é que faz no retrato o ator José de Abreu?

Ele mesmo procurou esclarecer o mistério com um texto publicado no blog do Xexéo. O título é tão intrigante quanto a aparição em Brasília:Piratas, Papagaios, Torturas e Torturados. E tão amalucado quanto o texto, que começa por registrar o desconforto do articulista com a chuva de piadas que a foto inspirou. “A pior, exatamente de um humorista, o Gregório Duvivier, lançou meu nome (ainda bem que foi apenas o nome, não eu) para o Ministério da Figuração, logo eu que vivo fazendo novela das oito”, resmunga.

Com uma alusão cifrada a Dilma Rousseff, Abreu insinua em seguida que ficou na ribalta a pedido da estrela: “A verdade é que, naquele momento, quando tiraram os outros papagaios do palco e eu ia descer, uma mão firme me segurou, um olhar carinhoso cruzou com o meu e me senti estimulado a ficar. E fiquei”.  O resto do palavrório celebra o combatente triunfante:

Eu estava entre amigos, lutadores, como eu, da boa luta. E vitoriosos numa batalha onde golpes baixos eram lançados a toda hora, um aborto na canela, uma homofobia nas partes pudendas, um bispo protetor de pedófilo pisando no dedão… Terrorista, ladra, assassina, era o que se dizia dela, minha companheira de luta contra a ditadura, que de branda nada tinha. E tome machismo, preconceito, baixarias. Estava feliz e emocionado, a lembrar dos censurados, dos torturados, dos assassinados pelo terror de Estado.

E pensei:

— Melhor ser papagaio de pirata que pirata sem papagaio.”

Foi a segunda atuação de José de Abreu como coadjuvante de comédias políticas de péssimo gosto.  Se desta vez só havia mocinhos em cena, eram vilões assumidos todos os participantes do espetáculo de estreia, encenado no Rio em agosto de 2006, na casa do ministro Gilberto Gil. Sentado na primeira fila de cadeiras da sala de visitas, o presidente Lula, convidado de honra, ouviu o resumo da ópera feito pelo produtor de cinema Luiz Carlos Barreto. “A política é um terreno pantanoso, a ética é de conveniência”, disse Barretão. “Se o fim é nobre, os fins justificam os meios. O que eu acho inaceitável é roubar. Mentir é do jogo político. Não é roubo”.

Em campanha pelo segundo mandato, Lula sentiu-se entre companheiros. Sentiu-se entre cúmplices com a fala inicial do ator Paulo Betti: “Não vamos ser hipócritas: política se faz com mãos sujas”, recitou o ex-galã. “Não estou preocupado com a ética do PT”, solfejou o músico Wagner Tiso. “Acho que o PT fez um jogo que tem que fazer para governar o país”. O epílogo do espetáculo do cinismo ficou por conta do coadjuvante que, agora como papagaio de pirata, acusa as vítimas de práticas celebradas em 2006 na casa de Gilberto Gil. Foi ele o escalado para proclamar a inocência de José Dirceu, José Mentor e José Genoino, e a estender o braço solidário dos presentes aos três companheiros.

Todos Josés, como o ator. O Dirceu foi denunciado pela Procuradoria Geral da República e será julgado pelo Supremo Tribunal Federal por chefiar a quadrilha do mensalão. O Mentor ampliou notavelmente o prontuário como relator da CPI do Banestado e comparsa de Marcos Valério. O Genoino, uma das estrelas do mais superlativo escândalo da história da República, evadiu-se da presidência do PT depois que o assessor do irmão foi capturado com dólares na cueca. Abreu, o quarto José, mereceria a condenação ao ostracismo pelos brasileiros decentes se já não tivesse sido desde sempre condenado à obscuridade.

Os integrantes da tribo de José de Abreu são dependentess de patrocínios extorquidos de empresas estatais e favores concedidos pelo governo. Artistas e intelectuais estatizados se preocupam demais com as incertezas do futuro. É por isso que tantos envelhecem mal. Ou nem envelhecem: frequentemente passam, sem escalas, de moços a velhacos.

Se abraça e afaga até um Fernando Collor, se não o constrange beijar a mão de um Jader Barbalho, se é capaz de enxergar uma batina imaculada no jaquetão de um José Sarney, como entender o tratamento rancoroso dispensado pelo  presidente Lula aos senadores que, em dezembro de 2007, decretaram a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras? Se o aumento da arrecadação compensou a perda dos R$ 50 bilhões recolhidos anualmente, se está provado que o governo nunca investiu no sistema de saúde o dinheiro da CPMF, como explicar o esforço obsessivo do presidente para antecipar a morte política dos autores da desfeita, e completar a revanche com a ressurreição do imposto do cheque?

Por que tamanho e tão duradouro ressentimento? Porque o fim do tributo foi também o fim do sonho, esclareceu a colunista Dora Kramer, com a argúcia habitual, no Estadão desta sexta-feira.  “A derrota na votação da CPMF no Senado enterrou o projeto do terceiro mandato”, lembrou. “Ali ficou claro que, se passasse pelos deputados, pelos senadores não passaria. Portanto, aquela não foi uma derrota qualquer. Foi uma derrota política surpreendente e definitiva”. Perfeito. Onde os brasileiros comuns veem um imposto a menos, Lula sempre enxergará o confisco dos quatro anos a mais.

“Peço que nossa oposição não faça contra Dilma a política que fez comigo, a política do estômago, a política da vingança”, fantasiou nesta terça-feira o infatigável carrasco da verdade. A sorte de Lula foi lidar com uma oposição parlamentar pusilânime. Em agosto de 2005, por exemplo, as estarrecedoras revelações do marqueteiro Duda Mendonça empurraram o chefe para a beira do penhasco. Foi poupado do impeachment pela tibieza dos adversários. De lá para cá, o sono sem sobressaltos foi-lhe assegurado pela superlativa tibieza dos adversários e pela nenhuma vergonha dos companheiros. O Senado só não engoliu a CPMF. O problema é que esse é o outro nome do terceiro mandato.

A “política do estômago, a política da vingança” ─ essa quem praticou todo o tempo foi o presidente grávido de ressentimento. Nas eleições municipais de 2008, por exemplo, acampou em Natal para exigir do eleitorado a derrota da candidata apoiada pelo senador José Agripino. Neste ano, fez o que pôde e também o que a lei proíbe para impedir a reeleição do potiguar Agripino, do amazonense Artur Virgílio e do cearense Tasso Jereissati. Na semana passada, num comício no  Piauí, comunicou à plateia que a derrota dos senadores Mão Santa e Heráclito Fortes, candidatos à reeleição, foi “uma vingança de Deus”. É um dos codinomes de Lula.

O triunfo nas urnas não bastou. Para completar a vingança, o chefe aproveitou a entrevista ao lado de Dilma Rousseff para exumar o defunto. Ao longo da campanha presidencial, a sigla não foi mencionada uma única vez. Os candidatos a governador nem lembraram que a CPMF existiu. Eleita, Dilma afirmou que não pensava em nada parecido com o imposto do cheque. Mas a palavra do Mestre está acima da coerência, da honra e da altivez. Os governadores do PSB assumiram a paternidade da malandragem, a presidente eleita se dispôs a tratar do assunto e a tropa avança em direção ao bolso dos brasileiros.

“As urnas deram ao partido a obrigação de fazer uma oposição forte, sem concessões”, disse o senador Sérgio Guerra na carta enviada na quinta-feira aos militantes tucanos. “A luta pela democracia não se faz só em época de eleições, mas todos os dias, em todos os lugares, reais ou virtuais”. O presidente do PSDB leu corretamente a mensagem emitida por 43 milhões de eleitores insatisfeitos: a luta política é um eterno recomeço. O fim de uma campanha eleitoral anuncia o início da próxima. E a um democrata oposicionista cumpre fazer oposição — sem ódios, mas sem tréguas.

Para vingar-se dos que lhe negaram o terceiro mandato, Lula resolveu castigar todos os brasileiros com a ampliação da carta tributária. Como em 2007, o Congresso não ousará ignorar a voz das ruas. O imposto do cheque não deixou saudade e não faz falta. Deve continuar na cova rasa em que está.

“Ela está mais solta, mais desembaraçada”, informam os colunistas estatizados e os parceiros da base alugada. “Ela está mais segura, mais confiante”, aplaudem os Altos Companheiros e as plateias alugadas. Dilma Rousseff é a Dilma Rousseff de sempre,  constatou o jornalista Celso Arnaldo Araújo depois da entrevista ao Jornal da Band.  O falatório continua incongruente, raso, errático, tosco, absurdo. Mas o que era declaração de candidata agora é pronunciamento de presidente eleita ─ e por isso merece mais que comentários sarcásticos e sucessivas internações no Sanatório Geral. Merece contragolpes e corretivos  exemplares, como os aplicados pelo texto de Celso Arnaldo:

“Eu quero dizê que eu vou sê implacável com o comprimento (sic) da Lei Maria da Penha”

Dilma Rousseff, em entrevista anteontem ao Jornal da Band, prometendo encurtar a complicada lei que pune agressores de mulheres em ambiente doméstico.

Sim, poderia ser apenas mais uma internação da candidata Dilma Rousseff no Sanatório desta coluna – devem ter sido mais de 200, ao longo de 15 meses. No conjunto, uma coleção de cretinices que inviabilizaria, por espanto dos associados, até a candidata à presidência de um modesto clube de campo.

Consumado o embuste, desde as 8 horas da noite do dia 31 de outubro de 2010, quando o TSE confirmou oficialmente sua vitória, a presidente eleita já não merece a leniência do sarcasmo — marca registrada do Sanatório — que reservávamos à candidata.

O Brasil é que precisaria ser implacável com o cumprimento de uma hipotética Lei Dilma Rousseff – contraponto da Lei Maria da Penha. Se aprovada, puniria com a perda de mandato o presidente que agredisse sistematicamente um elenco de obrigações inerentes ao cargo de primeiro mandatário do país, todas do gênero feminino — a língua portuguesa, a liturgia do cargo, a concatenação de ideias, a honestidade de conceitos, a lógica descritiva, a informação com conteúdo, a expertise gerencial, a verdade insofismável, a naturalidade expositiva, a elegância de estilo.

Por essa lei homônima, Dilma Rousseff não duraria uma semana no cargo. Maria da Penha Maia Fernandes suportou quatro anos de agressões do marido. O Brasil não chega lá.

Deitando falação pretensamente feminista sobre a Lei Maria da Penha no Jornal da Band, a presidente eleita agrediu tudo isso e muito mais. Em 80 inacreditáveis segundos, demonstrou absoluto desconhecimento não apenas da lei, mas dos próprios limites da atuação de um presidente da República – e, como sempre, uma agônica dificuldade para encontrar a palavra certa: um problemaço institucional e diplomático para um presidente da República. Seu palavrório sobre o câmbio, na véspera, no Jornal Nacional, já tinha sido um naufrágio sem âncora. E o dólar, sempre avisa o professor Delfim Netto, não leva desaforo pra casa. Voltando a Maria da Penha:

“A impunidade é um fator que dá às pessoas que cometem crimes a sensação que elas podem cometer sem punição”.

Nossa presidente eleita, com sua sensibilidade singular, decretou que é a impunidade que faz as pessoas se sentirem impunes. É um avanço no diagnóstico da violência no Brasil. Agressores de mulheres que ainda não entenderam a lei, tremei!!:

“A Lei Maria da Penha é clara, ela pune com prisão, qualquer, seja quem seja que faça, qualquer agressor à mulher”.

Pela Lei Dilma Rousseff, “seja quem seja que faça” exigiria sentença capital. “Agressor à mulher”, seria um agravante.

Desempenho terrível
Uma pergunta: o caso Netinho foi uma exceção ao “seja quem seja que faça”? Prossegue a legisladora:

“E aí é importante que a gente esclareça não só as polícias, né, que a gente faça campanhas no sentido tamém de esclarecê a sociedade. Porque denúncias do agressor é algo que é importantíssimo que ocorra e também é importantíssimo que os órgãos públicos e a Justiça acolham a denúncia. E sejam prontos no sentido de investigá, puni, condená, né, o agressor e não deixá que hoje essa espécie de convívio com a agressão, que aliás no Brasil é histórica, ela num cumeçô ontem”.

A Lei Maria da Penha foi promulgada em 2006, último ano do primeiro mandato de Lula. O companheiro – com a poderosa Dilma na retaguarda, a “primeira mulher presidente” – não conseguiu até hoje fazer a lei funcionar? As “polícias” não foram avisadas de que bater em mulher, aliás bater em qualquer pessoa, é crime? A Justiça também não tomou conhecimento? Nunca antes na história deste país se bateu tanto em mulher e agora isso vai acabar? Maria da Penha votou em Lula e agora em Dilma?

O fecho desse libelo contra a agressão à mulher é monumental:

“Então as pessoas achavam que a mulher podia sê agredida”.

Quem achava? Netinho, aliado de Dilma?

Mas isso vai mudar:

“Colocarei o peso do governo federal pra assegurá que seja comprida (agora ela quer a lei grande de novo…), quem for agredida, se denunciá e a gente consegui pegá o agressor, o agressor será exemplarmente punido”.

Parece evidente que, por nunca saber do que está falando e o que está falando, a presidente Dilma Rousseff não fará nada para assegurar o cumprimento da Lei Maria da Penha – que é apenas uma dos milhares de leis e projetos com que o presidente terá de interagir em seu governo.

O terrível desempenho da presidente eleita, de domingo para cá, já não merece ironias ou deboche — apenas uma justa preocupação com o perigo real e imediato que seu despreparo, agora oficializado, pode representar para a governabilidade.

Para ela, uma palavrinha difícil — mas fundamental para a sobrevivência de um presidente.

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Fonte:
Blog Augusto Nunes (VEJA)

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