Se depender da vontade da Câmara dos Deputados, não há perigo de melhorar

Publicado em 10/03/2011 17:21

Na primeira metade do século passado, discursos à beira da sepultura transformavam todo morto ilustre em “pai extremoso, marido amantíssimo e filho exemplar”. Ou filho extremoso, pai amantíssimo e marido exemplar, tanto fazia. Os três adjetivos se ajustavam admiravelmente a qualquer dos substantivos, a ordem de entrada em cena não alterava o impacto do elogio poderoso, o efeito era o mesmo fossem quais fossem as parcerias estabelecidas pelo orador.

Vivíssima, a deputada Jaqueline Roriz mereceu do Partido da Mobilização Nacional, a que pertence, uma versão superlativa dessa pérola da retórica barroca. Na nota sobre a protagonista do mais recente vídeo da coleção do vigarista Durval Barbosa, o redator explica que o PMN convidou Jaqueline para filiar-se à sigla, em 2009, “baseado nas informações então colhidas, de se tratar de uma pessoa de boa índole e fácil trato, filha zelosa (de Joaquim Roriz, acrescento), mãe dedicada, esposa amantíssima, estimada pela população, com estabilidade financeira, interessada no exercício da ação política”.

O que teria feito uma figura de tão fina estirpe cair na vida? O mistério ainda aflige o PMN, informa a continuação da nota: “Lamentamos profundamente que com esse perfil, por moto próprio ou induzida por terceiros, tenha se deixado envolver ingênua e desnecessariamente numa prática nefasta, própria de agentes políticos com pequena expressão, com tibieza ética, moral e intelectual, sem horizontes e com carreira curta”.  Se é a direção do partido quem está dizendo isso, Jaqueline não escapará da expulsão, certo?

Errado, informa a súbita mudança de rota do texto: “Lamentamos também que, com elogiáveis exceções, alguns jornalistas venham se especializando em promover antecipadamente e a seu bel-prazer o linchamento moral de algumas pessoas, quando é visível o ‘poupamento’ de outras”. Se o redator da nota escapar da internação perpétua no Sanatório Geral, não será má ideia transformá-lo em porta-voz do deputado Marco Maia.

A nota do PMN ─ um asteroide da constelação dos nanicos fundado em 1989, hoje com 194 mil filiados ─ ao menos dá vontade de rir. As declarações do presidente da Câmara sobre o mesmo caso despertam, como disse Roberto Jefferson a José Dirceu, os instintos mais primitivos de qualquer brasileiro decente. O parlamentar do PT gaúcho promete “acelerar as investigações” sobre a colega, mas ainda não sabe quando nem como. Grávido de dúvidas, pediu mais informações ao Ministério Público.

“Depende do que tenha”, condiciona Maia. “Se vier com informações mais contundentes, vai para o Conselho de Ética”. Ele não achou tão contundente o vídeo repulsivo. Talvez espere que Jaqueline seja presa em flagrante de latrocínio para remetê-la a um conselho que ainda não funciona porque os líderes dos partidos não indicaram representantes. E que não pune autores de crimes cometidos antes do início da atual legislatura, em obediência à Doutrina Cardozo.

“Se vier com informações sem substância”, avisa Maia, “mando para o corregedor analisar”. O corregedor Eduardo da Fonte, melhor aluno do mestre Severino Cavalcanti, está viajando. Quando voltar, talvez tenha de analisar um palavrório “sem substância”. Seja qual for o foro, Maia lembra que é fundamental ouvir o que Jaqueline tem a dizer. “Não vamos burlar o procedimento”, declama.

Ainda sumida, a filha de Joaquim Roriz resolveu desligar-se da Comissão de Reforma Política. Não quer causar constrangimentos ao grupo de pais-da-pátria que inclui, entre outros prontuários, Paulo Maluf, José Guimarães, Waldemar Costa Neto, Almeida Lima, Newton Cardoso e Eduardo Azeredo. Esses continuam, como continua na presidência da Comissão de Constituição de Justiça o mensaleiro juramentado João Paulo Cunha.

Se depender da vontade da Câmara do Deputados, não há perigo de melhorar.

O título no alto da página 4 do Estadão desta quinta-feira informa: AUDITORIA DO TCU CONFIRMA FRAUDE EM LICITAÇÃO DE R$ 6,2 MILHÕES DA TV BRASIL. A ilegalidade se consumou no último dia de 2009, quando a emissora controlada por Franklin Martins contratou por essa bolada a Tecnet Comércio e Serviços Ltda. Cláudio Martins, filho do ex-ministro da Comunicação Social, é funcionário da empresa. Confira a reportagem na seção Feira Livre.

Nada disso seria divulgado se existisse no Brasil o que Franklin chama de “controle social da mídia”. É o atual codinome da censura.

Nos países sérios, a cada delação premiada concedida a um quadrilheiro graúdo segue-se a prisão do resto da quadrilha. O acusador entra no programa de proteção a testemunhas e os acusados vão para a cadeia. No Brasil, a Justiça garante a liberdade do delinquente delator, que não se dá ao trabalho de mudar de endereço nem de identidade, e não prende os meliantes delatados.

Em 1984, depois de preso no Brasil e extraditado para a Itália, o mafioso Tommaso Buscetta trocou a delação premiada por um depoimento que consumiu 45 dias seguidos sobre as ligações entre a organização a que pertencia e políticos de alta patente. Em seguida, para ganhar a proteção da Justiça americana, contou o que sabia sobre a “Conexão Pizza”, uma rede de tráfico de drogas controlada pela máfia de Nova York. Os 22 acusados por Buscetta acabaram na gaiola.

Entre 2000 e 2006, enquanto dirigia a Companhia de Planejamento do Distrito Federal, o ex-delegado de polícia e bandido militante Durval Barbosa acumulou 37 processos. Quando o cerco se estreitou em 2008, o então secretário de Relações Institucionais do governo José Roberto Arruda dispôs-se a colaborar com o Ministério Público em troca do abrandamento da pena.

“Por precaução”, o delator premiado gravara, durante a campanha eleitoral de 2006, vários encontros em que aparece entregando maços de dinheiro aos comparsas. A exibição em 2009 de parte da coleção (veja dois exemplos abaixo), que havia animado a Polícia Federal a desencadear a Operação Caixa de Pandora, causou estragos políticos de bom tamanho. O governador Arruda perdeu o emprego e dormiu na cadeia algumas semanas, deputados distritais caíram fora da Assembleia, outros desistiram da vida pública. Mas ninguém foi condenado. Ninguém está preso.

A divulgação pelo Estadão do vídeo protagonizado pela deputada federal Jaqueline Roriz tornou o caso ainda mais intrigante. Por que só foi exibido agora? Com quem estava? Quantos vídeos compõem a coleção completa? Durval Barbosa entregou todos? Por que alguns continuam inéditos? Quem aparece contracenando com o tesoureiro vigarista? Como explicar a divulgação a conta-gotas?

Nos países onde a Justiça funciona, delações premiadas desvendam segredos. No Brasil, o mistério fica maior.

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Fonte:
Blog Augusto Nunes (Revista Veja

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1 comentário

  • Luiz Prado Rio de Janeiro - RJ

    E então, Franklin Martins, a resposta será o silêncio? Afinal, se o Lulinha e os parentes da Erenice - entre outros - podem, por que não os seus, não é?

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