Para evitar suscetibilidades os nomes dos personagens deste causo são fictícios, porém, trata-se de um fato um tanto quanto fermentado, mas não inventado, extraído de uma reclamação trabalhista movimentada em uma das Varas da Justiça do Trabalho da Egrégia 18ª Região.
Januário trabalhou na fazenda do sr. Justino por trinta anos. Naquela fazenda ele foi agregado no início, quando seus pais já estavam ali arraigados, desde quando vieram do Estado da Bahia, na década de sessenta; ao depois foi meeiro em diversas safras de arroz, milho e feijão, nos intervalos das safras fazia empreitadas de aceiros, roçadas de pastos, arranquios de assa-peixes e mata-pastos. Quando não estava cuidando de suas roças "na meia" com o seu Justino ou não tinha empreitadas em andamento, trabalhava como diarista em alguns dias da semana, tanto para o seu Justino como para alguns confrontantes da fazenda e, às vezes, participava dos chamados mutirões nas vizinhanças ou emprestando seus serviços para depois recebê-los quando sua roça ficasse no mato, na chamada troca de serviços, costumeira naquela região.
Tudo ia muito bem, sua tuia estava sempre cheia, guardava de cada safra, para passar o ano, no mínimo vinte sacas de arroz e umas seis de feijão, por mera liberalidade do fazendeiro, engordava só para si muitos porcos no chiqueiro, muitas galinhas no quintal, umas três vaquinhas de leite cedidas pelo patrão para o sustento das crianças, no mais, era muita sombra, água fresca, botina folgada e muita pescaria, enfim, com Jacira, sua cara metade, era um caboclo feliz, tinha quase tudo que precisava, da cidade só vinha o sal e uma ou outra coisa qualquer e as roupas. Entretanto, o progresso foi chegando, primeiro através da Acar/Emater, com seus extensionistas rurais foi ensinado desde fritar ovo, plantar arroz, milho e feijão de carreirinha em vez de espaçadamente com a matraca, até plantar essas culturas no cerrado em vez de utilizar só terras de primeira, veio a privada de laje a chamada "casinha" para as necessidades fisiológicas em detrimento do "atrás da moita de bananeira" evitando assim as contaminações, num trabalho bonito de conscientização do homem do campo sem multa-lo e sem interferir violentamente em seus costumes e tradições. Mais recente surgiram por lá as notícias da Procuradoria e Ministério do Trabalho, que diferentemente daquela conscientização, muitos foram multados e com isso as coisas foram se modernizando na marra, não podia mais beber água da bica, as crianças não podiam auxiliar em nada, pois tornou-se crime até catar semente de capim, não podia fazer mais os acampamentos de lona para realização das roçadas de pastos, dormir em cama de pau duro "catre" nem pensar, pois, tudo isso podia caracterizar o chamado trabalho escravo com pesadas multas.
O patrão, num esforço concentrado para adequar-se às exigências da lei, ia alterando as condições de trabalho dos trabalhadores da fazenda e com isso a vida de Januário só complicava. Nestas alturas a região já contava com um atuante sindicato dos trabalhadores rurais e um apagado sindicato dos empregadores. Dessas atuações sindicais vieram as desconfianças, tanto seu Justino como Januário embora compadres, tornaram-se ariscos um com o outro, desconfiados, pois se o sindicato dos patrões alertava Justino sobre os riscos das incorporações daquelas vantagens ao salário, o sindicato dos empregados alertava Januário para a bolada de seus direitos, já que o mesmo era um empregado de trinta anos de casa, de sorte que as empreitadas foram diminuindo, a atividade da fazenda foi se diversificando, a criação de porcos foi acabando, as vacas de leite foram vendidas e, nos últimos anos, Januário não passava de um mero assalariado de salário mínimo, sem qualquer outra vantagem, o que ganhava já não dava mais, acabou a fartura, não tinha mais a "tuia", tudo que precisava para o sustento de sua família tinha que comprar na cidade.
O certo é que as inúmeras vantagens propaladas por seu sindicato acabaram por sufocá-lo, ao ponto de ter de sair daquela propriedade, de mudança e tudo, malas, cuias, papagaios, cachorros e periquitos e movimentar uma ação milionária, daquelas bem fermentadas, face ao seu Justino, onde pediu um rosário de verbas trabalhistas, cujo somatório alcançou um montante superior a duzentos mil reais. Seu Justino ficou revoltado, especialmente com a quantidade de horas extras pedidas, e dizia: Como esse cara, esse malandro pode ter tanto direito, se eu sempre lhe paguei tudo que foi combinado? Para a sua defesa seu Justino contratou um de seus bons amigos e também advogado. Aquele experiente advogado argumentava sobre as exigências da lei e ele retrucava: que lei que nada, isso é coisa de safado, levar patrão no ministério é sujeira, ele não vai arranjar emprego em lugar nenhum, vociferava o tempo todo. O dia assinalado para a audiência estava cada vez mais próximo, documentos, como quase todo patrão nessas condições, quase não tinha, testemunhas tinha várias, porém, dependendo do rumo dos depoimentos a vaca podia ir pro brejo e haja insônia.
Conversa vai, conversa vem, seu advogado tentava convencê-lo da necessidade de fazer um acordo, ao que ele respondia: de jeito nenhum, num dou nem um tostão furado para esse malandro.
Chegado o dia, com toda aquela ansiedade, teve início a audiência, seu Justino se viu diante de um jovem juiz, cara de menino, ficou a pensar será que esse menino sabe as coisas lá da roça pra julgar um processo deste, será que ele não é um daqueles que pensa que macarrão dá na árvore? Enquanto matutava, o juiz começou com a tradicional, livre e espontânea pressão em busca de um acordo, o advogado alertava Justino várias vezes para apenas ouvir o juiz e jamais emitir seus conceitos sobre a Justiça do Trabalho, ou sobre o Januário, no entanto, com o desenrolar da audiência, ele, achando o juiz muito simpático e sábio, ficava imaginando: esse juiz novo desse jeito parece saber tudo lá da roça, parece até que ele sabe o que é "uruvái" da manhã e "picumã" do fogão de lenha, este juiz é muito bom, simples e humilde, tem muito conhecimento das coisas e também sabedoria, no entanto, mesmo com toda simpatia e tantos argumentos, aquele sábio juiz ainda não havia conseguido arrancar uma proposta de acordo para solucionar aquela lide, quanto mais insistia, mais o seu Justino falava mal do Januário, até que afirmou: esse cara num vale nada, doutor. O juiz, com a paciência de juiz seguro e firme, pensando estar jogando uma ducha lorenzetti de água fria nos argumentos daquele fazendeiro, afirmou: Mas sr. Justino o sr. não pode dizer isto do sr. Januário, como o sr. diz isto se ele trabalhou e morou na sua fazenda por trinta anos e só agora o sr. descobriu que ele não vale nada, como o sr. explica isto? Ora, doutor! Eu sempre fui um cara tolerante, não só com ele, mas com todos, só pro senhor ter uma idéia, eu sou casado há cinqüenta anos com a mesma mulher, sempre a tolerei com a maior paciência, no entanto, ela é uma caninana. O juiz levou a mão à cabeça, pensou e disse: um a zero para o senhor, eu desisto, vamos para a instrução do processo.
Levi de Alvarenga Rocha é advogado,e perito contábil