É carnaval no Brasil. Quem se importa com o tamanho do buraco onde estamos metidos?

Publicado em 10/02/2015 17:56
por LUIZ RUFFATO, articulista do EL PAÍS.

O avião deveria decolar do aeroporto de Porto Alegre rumo a São Paulo às 14h40. Dez minutos antes do embarque, uma voz feminina informa, burocrática, que "devido a problemas técnicos" a aeronave pousará às 16 horas. Deixamos a capital gaúcha às 16h30, quase duas horas depois do horário previsto. Ninguém reclama. Mantivemo-nos calmos, sentados, consultando o celular. Às 18h05, aterrissamos em Congonhas, mas somente meia-hora depois encosta o ônibus que nos levará ao terminal de desembarque. Ninguém reclama. Mantivemo-nos calmos, de pé, espalhados pelo corredor do avião. E calmos nos mantivemos em frente à esteira, aguardando a chegada das malas – por mais meia-hora... Ninguém reclama – no Brasil, falamos mal de quase tudo, mas à boca pequena, de maneira que ninguém nos ouça. Poucas vezes reivindicamos os nossos direitos: não queremos ser malvistos, não queremos ser tidos como encrenqueiros, como alguém sem polimento social...

Em Helsinque passo uma das maiores vergonhas da minha vida. Hospedam-me na Casa do Escritor Finlandês, cenário de cartão-postal: a edificação, incrustada numa floresta, debruça-se sobre um lago onde nadam cisnes elegantes. Do outro lado, o belíssimo e imponente prédio da Musiikkitalo, a Casa da Música. Ruídos, apenas dos esquilos que atravessam os canteiros de flores, de alguns passantes que cruzam os caminhos, a pé ou de bicicleta. Estamos em plena primavera. Todos os habitantes deste país louro embebedam-se de sol, raro, e de cerveja e vodka, abundantes. No primeiro dia, após me inteirar do quarto, saio para um passeio, não sem antes fechar as janelas. Regresso por volta das onze horas da noite, ainda com luz às minhas costas. Faz calor e não há ar condicionado. Dia seguinte, de novo saio cedo, de novo fecho as janelas. Regresso por volta das cinco, tomo banho e me apronto para participar de uma mesa às sete. A zeladora, que lia um grosso volume, do qual só consigo identificar na capa um nome que me parece ser Dostoievski, me pergunta: Por que o senhor fecha as janelas ao sair? Eu começo a responder. É porque tenho receio de que alguém, e paro. O resto da minha frase, que não digo: ...entre e roube meus pertences... Percebo a tempo que ela não compreenderia se eu explicasse que em meu país nos acostumamos a viver em sobressalto, que se estivesse alojado num lugar ermo como aquele e deixasse a janela aberta, quando regressasse pouco ou nada restaria da minha bagagem... Enrubesço, engasgo, desconverso... Permaneço enrubescido e engasgado até hoje...

Filipe, meu filho, indaga: como conciliar a defesa intransigente da liberdade de expressão de um jornal que satiriza um ícone religioso – ele lembrava o caso recente do Charlie Hebdo – com a condenação intransigente do bullying no cotidiano – ele se referia a toda a neolinguagem criada para evitarmos termos que possam ser ofensivos a outras pessoas. Eu, totalmente favorável à liberdade de expressão, e que condeno de maneira irremediável o bullying, continuo aqui pensando, sem resposta.

Mesmo que adotemos a única solução sugerida pelo ministro das Minas e Energia, Eduardo Braga, de rezarmos a Deus para que chova, certamente enfrentaremos um rigoroso racionamento de água e energia elétrica, em breve. Esse transtorno poderia ter sido evitado caso tivéssemos feito, nos últimos dois anos, campanhas para economizar água ou mesmo houvéssemos optado por um racionamento brando: a perspectiva de escassez de chuvas já se entremostrava desde meados de 2013. Os administradores públicos, temendo perder as eleições do ano passado, preferiram mentir sobre a real situação dos recursos hídricos. Isso porque sabem que enganar é parte da nossa cultura. Ninguém reclama, todo mundo entende...

O taxista me conta, entusiasmado e indignado, um caso de trânsito. Seu pai e dois irmãos rumavam, em carros separados, para o sítio onde passariam o fim de semana. No cruzamento de uma avenida movimentada, uma viatura da polícia buzina, tentando induzir o veículo dirigido pelo pai a ultrapassar o sinal vermelho, mesmo não estando com a sirene ligada. Ele se recusa, receio de ser multado. Agressivos, os policiais descem, arma em punho, ordenam que encoste no meio-fio e ameaçam-no de prisão por desacato. O automóvel conduzindo os irmãos do taxista estaciona logo atrás. Percebendo o que está ocorrendo, um deles apresenta-se como oficial da PM e, colérico, passa a humilhar os subordinados, forçando-os a pedir desculpas ao pai. O taxista ri da situação. O Brasil é assim, comenta, sarcástico. Reparei que ele deu uma enorme volta para chegar ao destino, fazendo com que o taxímetro marcasse quase o dobro do que custaria a corrida, caso houvesse percorrido o itinerário correto...

É carnaval no Brasil. Quem se importa com o tamanho do buraco onde estamos metidos?

Melancolia brasileira no Carnaval, por Juan Árias

O que sentem neste momento os trabalhadores decentes e sacrificados ao ver desfilar esta procissão de políticos emplumados saqueando o país?

 

Em menos de dois meses os brasileiros parecem ter passado da euforia ao desengano. É o que revelam os números de pesquisa do Datafolha, que mostram uma tomada de consciência nova e surpreendente do momento político e econômico vivido pelo país. Os cidadãos negam sua confiança na presidenta da República, Dilma Rousseff, e em seu Governo, reduzindo-a a 23%, meses apenas depois de a terem reeleito. Cerca de 70% já não se sentem próximos a nenhum partido.

Há momentos na história de um país — neste caso, o Brasil — em que é difícil analisar um processo de transformação tão rápido porque nele se misturam diferentes fatores e imponderáveis. E é nessas circunstâncias que substantivos e adjetivos se tornam insuficientes para expressar o que arde no coração das pessoas. Precisamos recorrer mais que nunca à semântica, porque as palavras, já banalizadas e despojadas de seu significado original, não bastam.

Dizer que o Brasil vive uma crise é dizer pouco ou talvez nada. Ressaltar que os brasileiros, depois de seus dias de glória, estão hoje preocupados com todo este rosário de notícias negativas, oferecidas a cada momento pelos meios de comunicação, como os escândalos de corrupção, a crise econômica, a perda de confiança nos governantes e a desilusão com a classe política em geral, também não diz tudo.

Que palavra extrair do dicionário para explicar o que palpita neste momento na maioria dos brasileiros, que começam a ver, incrédulos, como são fustigados pela falta de água, de energia, de esperança no futuro, pelo medo de perder o que têm e até o emprego?

Como definir o que sente a grande massa dos trabalhadores honrados, das pessoas e famílias decentes, dos que ainda não perderam os valores essenciais da vida e desejam inculcá-los em seus filhos, enquanto veem desfilar a trágica procissão de corruptos de alto coturno, os que até ontem se acreditavam intocáveis e para quem a mentira é somente um jogo permitido aos grandes?

Em rápida sondagem entre amigos e desconhecidos pertencentes a diferentes classes sociais, e depois de ter lido por estes dias centenas de cartas dos leitores enviadas aos jornais, tanto em papel quanto digitais, e dezenas de análises de cientistas políticos e sociólogos, atrevo-me a dizer que os brasileiros neste momento, mais que raiva e rebeldia, sentem este tipo de tristeza, já analisada por gregos e romanos, chamada melancolia, que Freud analisou como um “processo de luto sem a perda do objeto”.

A melancolia, analisada ao longo do tempo, é um vocábulo polissêmico, com muito significados, mas todos eles giram em torno de um mesmo conceito, que engloba de uma vez tristeza, cansaço, amargura, falta de entusiasmo e também desinteresse.

E tem um gosto amargo como a bile, à qual os antigos se referiam para descrever o estado de ânimo melancólico.

Até quase nada de tempo os brasileiros estavam convencidos de que sua vida iria melhorar. De repente se deparam com um futuro incerto, com anúncio de recessão econômica e com uma indústria em crise, demitindo milhares de trabalhadores.

Há apenas alguns meses, milhões de brasileiros marcaram nas urnas, democraticamente, seu voto para reeleger presidenta da República Dilma Rousseff, considerada uma das mulheres mais poderosas do mundo.

E agora, segundo a recente pesquisa do Datafolha, somente 23% aprovam sua gestão, o menor índice de um presidente nos últimos 25 anos. A presidenta, que em seu primeiro mandato surpreendeu por sua disposição para rechaçar a corrupção e chegou a afastar de seu Governo seis ministros herdados dos governos gloriosos de seu antecessor, o popular e carismático Lula da Silva, hoje é vista por cerca de 77% como sabedora do escândalo de corrupção da Petrobras, e 52% a consideram conivente com a mencionada corrupção.

Há mais: 46% dos brasileiros consideram que Rousseff mentiu durante a campanha eleitoral, 54% a consideram falsa, 47%, desonesta, e 50%, indecisa.

Volúveis os brasileiros ou desenganados de seus políticos?

Não existe neste momento um movimento de massa que peça a saída da presidenta; não há som de sabres nem as pessoas começaram a sair às ruas. Tampouco se percebe algum movimento revolucionário.

O que sentem então os brasileiros? Por ora, desgosto, melancolia, desencanto e talvez até medo, já que ninguém se atreve a profetizar onde desembocam os rios da melancolia. Por enquanto, as pessoas comuns puseram de lado seu estado de melancolia para se permitir oparêntese do carnaval, cuja força de desintoxicação das penas acumuladas continua a ser mais forte que todas as tristezas e cansaços existenciais.

E depois? Talvez nada, ou talvez tudo. Os brasileiros sempre terminam surpreendendo por sua atávica capacidade de se arrumar na vida seja como for.

Acabo de ver um vídeo na internet emblemático do drama que começa a ser vivido em razão da falta d’água: uma jovem recolhe feliz as primeiras gotas de chuva em um copo, enquanto dança de alegria porque poderá fazer café.

Melancolia e esperança continuarão a conviver neste momento no coração dos brasileiros, que já viveram tempos piores.

 

Falta à reação de Dilma um bom samba-enredo, por Josias de Souza (do UOL)

Atordoada com o surto de impopularidade detectado pelo Datafolha, Dilma Rousseff está sob contestação. Lula, o PT e até os apologistas que a rodeiam cobram dela algum tipo de reação. Um de seus ministros resumiu a cena recitando Chacrinha: “Quem não se comunica se trumbica.”

Em reunião emergencial com seu staff de conselheiros, a presidente exibiu disposição para colocar o bloco na avenida. Falta-lhe, porém, um samba-enredo. Forçada a trocar a fábula da campanha pela cartilha fiscal de Joaquim Levy, Dilma ficou sem assunto.

Há na agenda da presidente apenas problemas. São três os mais graves: 1) a mistura de PIB estagnado com carestia indomada, 2) a fobia do apagão, e 3) a petropilhagem. A ruína econômica e energética é parte do legado que Dilma deixou para si mesma. O assalto à Petrobras começou sob Lula e lhe caiu sobre a cabeça.

Dilma tem muito pouco, quase nada a dizer sobre tais encrencas. Primeiro porque sua disposição para a autocrítica cabe numa caixa de fósforos. Segundo porque, se falasse a sério sobre corrupção, romperia os laços de cumplicidade que a unem a Lula. Habituou-se, então, a dizer empulhações que ofendem a inteligência alheia.

De resto, acostumada a uma oposição que não se opunha, Dilma passou a enxergar o fantasma do golpismo em cada vírgula emitida por tucanos e assemelhados. Na noite de sexta-feira, ao discursar na festa de 35 anos do PT, ela disse:

“Os que são inconformados com o resutado das urnas só têm medo de uma coisa: da mobilização da sociedade em defesa das instituições e em repúdio a qualquer tentativa de golpe contra a manifesta vontade popular, porque eles têm medo da democracia, nós temos força.”

No final da tarde do dia seguinte, o Datafolha informaria que a popularidade da presidente recém-reeleita despencou 19 pontos percentuais desde dezembro. Ela ficou impressionada com a quantidade de brasileiros que a consideram falsa (54%), indecisa (50%) e desonesta (47%).

Caiu-lhe a ficha. Antes de mobilizar a sociedade, terá de reconquistá-la. Dilma agora fala em sair do Planalto, viajar aos Estados, conceder mais entrevistas… Cogitou levar o rosto à tevê, num pronunciamento que seria transmitido em rede nacional depois do Carnaval. Uma pergunta flutua na atmosfera: para dizer o quê?

Foi num desses pronunciamentos levados ao ar em cadeia (ops!) nacional que Dilma, sob influência de João Santana, prometeu, no ano passado, conta de luz barata e energia perpétua (repare no vídeo abaixo). Nessa época, em vez de estimular o consumo, o governo deveria ter deflagrado uma campanha de uso racional da energia.

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Foi numa entrevista concedida no ano pré-eleitoral de 2009 que Dilma criticou uma CPI criada para varejar a Petrobras (assista a seguir). Nessa época, Dilma ainda presidia o Conselho de Administração da estatal. E os diretores partidários nomeados sob Lula já assaltavam a companhia, em conluio com as empreiteiras. São evidências de que não convém soltar Dilma na avenida sem algum ensaio e sem um bom samba-enredo.

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Fonte:
EL PAÍS + Josias de Souza (UOL)

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1 comentário

  • Telmo Heinen Formosa - GO

    Pela teoria do PT roubalheira, sempre houve; só que antes era escondida pelos governos e, agora, desde a presidência de Lula, é investigada às claras. Sendo isso verdade, o mensalão e a lava-jato devem ser incluídos no rol de realizações da era petista. Sem nenhum exagero, esse tremendo flagra na corrupção pode até aparecer na lista do “nunca na história deste país....”

    Ocorre que o PT, pelo que dizem seus militantes, do mais ilustre até a base, não aceita esse mérito. Mensalão? Nunca existiu. Os condenados e presos? Vítimas da mídia e das elites. Lava-jato? Não tem nada provado, só denúncias de criminosos-delatores. Milionárias doações de campanha feitas por empresas suspeitas? Absolutamente legais.

    De maneira que ficamos assim: o governo do PT não esconde, nem engaveta nada, mas manda investigar e punir, dando independência e condições de trabalho a Justiça, promotoria e Polícia Federal. Era o que dizia a presidente Dilma durante sua campanha, foi o que repetiu para O GLOBO o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, ainda nesta semana. Mas o resultado da investigação, segue a teoria petista, está sendo manipulado com o fim de derrubar o próprio PT. De Carlos Alberto Sardenberg em http://oglobo.globo.com/opiniao/meio-merito-15311237

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