Protecionismo americano e a voracidade chinesa tiram o acordo UE-Mercosul da letargia

Publicado em 06/12/2024 15:45 e atualizado em 06/12/2024 17:04
Análise é do professor de Relações Internacionais da ESPM, Leonardo Trevisan, explicando bastidores do anúncio

Acordo UE-Mercosul - Presidentes

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Embora o esperado - por 25 anos - acordo entre a União Europeia e o Mercosul tenha sido anunciado nesta sexta-feira (6), ainda há um caminho longo para que o texto definitivo seja conhecido e, mais do que isso, para que esta aliança comercial passe a valer efetivamente. Assim, toda a pompa e circunstância que foram vistas no anúncio da aliança podem até ser justificadas, mas apenas momentaneamente. Afinal, o acordo foi anunciado, mas não está valendo. Os próximos passos são muitos, são burocráticos, enfrentarão muita resistência e, assim, os fogos de artifício que marcaram a manhã deste 6 de dezembro de 2024, já perderam seu brilho. 

A pergunta que agora paira é o que fez com que as conversas se acelerassem de tal forma que deram força para que o anúncio se deste nesta reta final de ano? Para o professor de relações de internacionais da ESPM, Leonardo Trevisan, a resposta é bastante clara: por conta do protecionismo americano. 

"As negociações tinham 25 anos, cheios de nãos. O que tirou o acordo da letargia foi o protecionismo americano. É o segundo governo Trump que está ameaçando a sobrevivência dos dois lados. Não só fez o acordo começar a andar, como vai fazer o acordo ser implatado", explica ao Notícias Agrícolas. "O protecionismo americano é muito forte, e será ainda mais forte, os EUA são o grande freguês. Mais de 15% do total das importações do mundo vão para um único país, que são os Estados Unidos. Eles são o grande freguês e estão fechando a porta. A União Europeia olhou para isso e viu que estava em um momento crítico e para o Mercosul não é diferente. O acordo é uma tábua de salvação para os dois lados". 

Ursula Von Der Leyen
Ursula Von Der Leyen - Presidente da Comissão Europeia

Trevisan complementa dizendo que, embora o agronegócio esteja agora em um centro importante das discussões - e também por parte da resistência dos países dos quais ela vem - não é o único setor que exige atenção. O professor cita como exemplo a indústria alemã. "A Alemanha, a poderosa Alemanha, está completando agora o terceiro ano de recessão econômica porque está enfrentando muita barreira para entrar nos EUA com seus produtos. Tem a China entrando. Assim, não é só o protecionismo. O protencionismo americano é assustador, mas a voracidade de exportação chinesa também é assustadora. Então, foi nesse sentido que os dois lados sentaram para conversaram e esqueceram as prosopopéias porque tinham um problema maior". 

Desta perspectiva mais ampla, o professor ainda afirma que o acordo não garante apenas portas mais largas para a entrada, por exemplo, de mais carros alemães nos países do Mercosul, mas um ambiente mais atrativo para a chegada de importantes investimentos que poderão promover a atualização da indústria brasileira. "A reindustrialização brasileira vai passar por este processo e isso é muito importante. Então, não são só vantagens para o agronegócio", afirma o Leonardo Trevisan. 

QUAIS OS MOTIVOS DA RESISTÊNCIA?

"E os calos pisados dos franceses? Os franceses tiveram calos pisados, mas o restante da Europa olhou para a situação e pensou: que tal comprar produto mais barato e melhor? Por que eu tenho que continuar comprando produto francês? Essa é a gritaria! A ponto de fazer os supermercados franceses mentirem sobre a carne brasileira. Então, de alguma forma, se não se olha para este quadro econômico, não se compreende que a política vai ter que andar", complementa o especialista. 

Novos protestos por agricultores franceses foram registrados nos últimos dias, com os agricultores pedindo, inclusive, por "desobediência civil" diante do acordo UE-Mercosul. Ao mesmo tempo, o presidente da França, Emmanuel Macron, enfrenta um turbulento cenário político em seu país, inclusive com parlamentares de direita e esquerda pedidndo por sua renúncia, depois da recente queda de seu primeiro ministro Michel Barnier, no início desta semana. 

Mais do que isso, o líder francês ainda teria dito a Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que os termos do acordo seriam inaceitáveis e que seguiria se opondo ao acordo. Ao seu lado, estão ainda países como Itália, Polônia, Holanda, Áustria, em mais algumas pequenas nações europeias. A justificativa se dá, mais uma vez, na agricultura. Mais de uma vez, o presidente francês se valeu de um discurso de "proteção aos agricultores franceses" para expressar seu descontentamento com o avanço do acordo. Suas preocupações, no entanto, servem apenas para disfarçar o temor que sente sobre seu já abalado futuro político. 

"O território dos agricultores franceses é um território muito promissor parao avanço a direita europeia, principalmente Marine Le Pen (principal opositora política de Macron). Então, de toda forma, Marine Le Pen está esfregando as mãos diante desse acordo porque os agricultores franceses, obviamente, são contra (o acordo) porque eles têm um mercado cativo. O restante da Europa compra produtos, principalmente da indústria láctea francesa e polonesa, e o agronegócio brasileiro é muito eficiente nessa indústria, com graus de produtividade muito maiores do que os franceses e poloneses. Assim, é evidente que, ao longo do tempo, a França perderá mercado na União Europeia para os produtos do Mercosul. O medo é esse, não as cotas de entrada na França que podem ser contidas, o medo é o resto da Europa", detalha Trevisan. 

O QUE FALTA PARA COMEÇAR A VALER O ACORDO?

O acordo que foi anunciado nesta sexta-feira foi construído em inglês, que não é a língua oficial de nenhum dos países que fazem parte dele. Assim, um dos primeiros próximos passos é fazer sua tradução para os idiomas de todos as nações participantes. São 27 da União Europeia - Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia e Suécia - além dos quatro do Mercosul - Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. A Bolívia foi aceita no bloco, porém, ainda está em processo de adesão e a Venezuela suspensa desde 2017. 

Depois disso, o texto terá de passar por todos os trâmites jurídicos para garantir que o acordo não esteja infringindo ou ferindo nenhuma norma ou lei do comércio internacional. E mais do que isso, ele terá de passar pelos chefes de estado do Conselho Europeu e pelos 720 votantes do Parlamento Europeu. Do mesmo modo, no Mercosul, o tratado deverá ser ratificado pelos quatro países membros. 

Dessa forma, a assinatura ocorrerá após a revisão jurídica e tradução dos textos. "Não há prazo definido. Após a revisão legal e tradução, será assinado, seguido da aprovação interna e ratificação por cada parte", informou a Royal Rural. 

NA PRÁTICA, O QUE AGRONEGÓCIO BRASILEIRO PODE SENTIR?

Há notícias bastante positivas para o agronegócio brasileiro que passam, principalmente pelo suco de laranja, frutas, café solúvel, óleos vegetais peixes e crustáceos, que teriam suas tarifas eliminadas. Entre as carnes - bovina, suína, de frango - arroz, mel, açúcar e etanol cotas adicionais, com tarifas reduzidas ou eliminadas, também podem entrar em prática e beneficiar estes setores, muitos deles nos quais o Brasil já tem liderança nas exportações. 

"Para a fruticultura brasileira, esse acordo abre portas para ampliar o acesso a mercados estratégicos e fortalecer a competitividade das nossas frutas nos países europeus. A redução de barreiras tarifárias faz justiça a competitividade brasileira no cenário global, visto que alguns países não têm barreiras tarifarias para enviar suas frutas para Europa. Os exportadores de frutas brasileiras atendem as rigorosas exigências internacionais relacionadas a critérios sociais, ambientais e de governança”, destaca o Presidente da Abrafrutas, Guilherme Coelho ao Notícias Agrícolas. 

Do mesmo, o presidente da ABPA (Associação Brasileira de Proteínas Animais), Ricardo Santin, afirmou que "aconsolidação do acordo abre novas oportunidades de embarques para o mercado europeu, em condições mais vantajosas do que as cotas atualmente existentes para embarques de produtos brasileiros à União Europeia.  As cotas atuais serão mantidas, e as novas estabelecidas pelo acordo deverão ser ocupadas, em especial, pelas exportações de produtos brasileiros". 

A consultoria Royal Rural fez um resumo breve de alguns dos produtos que podem sentir os impactos mais diretos do acordo na medida em que já estiver em vigor, da forma como foi anunciado nesta sexta-feira. Veja:

O que muda na carne bovina?
O Mercosul já é o principal fornecedor da UE, com exportações anuais entre 100 e 120 mil toneladas. Com a nova proposta, haverá uma cota adicional de 99 mil toneladas, com tarifas reduzidas para 7,5%. Esse volume quase dobra as exportações atuais.

O que muda na carne de aves? 
O Mercosul também lidera como fornecedor, com o Brasil exportando 300 mil toneladas anuais. O acordo estabelece uma cota adicional de 180 mil toneladas com isenção total de impostos.

O que muda no açúcar? 
O açúcar é outro ponto crucial do acordo, com a criação de uma cota de 180 mil toneladas com imposto zero. Esse açúcar será direcionado para regiões deficitárias do sul da Europa, como Espanha, Portugal e Itália, que hoje dependem do açúcar francês. Essa mudança ameaça diretamente o mercado francês, gerando forte oposição por parte do país. A disputa se intensifica, já que a entrada do açúcar do Mercosul pode reduzir significativamente a demanda pelo produto francês.

O que muda no milho?
No setor de milho, a UE já importa 25% de suas necessidades, com volumes expressivos provenientes do Brasil, variando entre 6 e 7 milhões de toneladas por ano. O novo acordo inclui uma cota adicional de 1 milhão de toneladas com impostos zerados, além de liberar a importação de derivados do milho sem limites e também sem impostos. Uma novidade importante é a inclusão de 600 toneladas de polióis, carboidratos derivados do amido de milho usados como substitutos do açúcar. Essa medida representa uma concorrência direta à produção francesa, que domina esse mercado, ampliando os motivos de resistência da França ao acordo. 

"Além desses produtos, o pacto prevê novas cotas para carne suína, etanol, arroz, mel, sorgo, suco de laranja, cachaça, queijos, iogurte, manteiga e frutas. Essas medidas expandem o alcance do agronegócio do Mercosul no mercado europeu, criando oportunidades para diversos segmentos do setor agrícola. Com o acordo, estima-se a eliminação gradual de 4 bilhões de euros em tarifas ao longo dos próximos anos", explica Marta Guimarães, analista de mercado da Royal Rural. 

A consultoria ainda fez uma rápida comparação ao anúncio entre os dois blocos que foi anunciado em 2019. "O anúncio de 2019 foi um "acordo político" sem a conclusão total das negociações. O de 2024 marca a conclusão definitiva. Foram ajustados temas como comércio sustentável, compras governamentais, comércio de veículos e exportação de minerais críticos, adaptando o acordo às condições políticas e econômicas atuais".

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Por:
Carla Mendes | Instagram @jornalistacarlamendes
Fonte:
Notícias Agrícolas

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