Uma sigla que quer mudar a ordem global
Em 2001, o economista do banco Goldman Sachs Jim ONeill criou a sigla Bric com as iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China. ONeill quis chamar a atenção para um grupo de países cujo potencial econômico deixaria as sete nações mais ricas do planeta para trás em 20 . Oito anos depois, o amontoado de letras deixou de ser uma ficção de relatórios econômicos para ganhar forma e conteúdo políticos. Na semana passada, os Brics fizeram sua primeira reunião oficial. Começaram a esboçar linhas de atuação em fóruns internacionais e na discussão de temas sensíveis em tempos de turbulência financeira. Sem muita modéstia e com uma imensa confiança no papel que o futuro lhes reserva, propõem uma nova ordem global, em que o papel do governo dos Estados Unidos seja reduzido - e o deles aumentado. Na avaliação do presidente russo, Dmitri Medvedev, a cidade que abrigou o encontro dos Brics, Ecaterimburgo, se tornou o "epicentro do mundo".
Na prática, as palavras de Medvedev, ao menos por enquanto, são tão exageradas como frequentes. As últimas décadas do século XX foram pródigas na descoberta de novas identidades para países, grupos de países e regiões geográficas. Nos anos , o sociólogo francês Yves Lacoste criou a expressão "países subdesenvolvidos" para se referir às nações mais pobres do planeta. Quando o termo foi incorporado a canções de protesto e mesmo programas humorísticos, acabou trocado por uma descrição menos agressiva, "países em desenvolvimento". Outro economista, Albert Sauvy, criou então para qualificá-los a expressão Terceiro Mundo, inspirada no Terceiro Estado da Revolução Francesa. Nos anos 60, surgiu o movimento dos países não alinhados, para definir nações que não vestiam a camisa da ex-União Soviética nem dos Estados Unidos na ex-Guerra Fria. O termo Bric não nasceu na academia. É, de certa forma, o primeiro conceito geopolítico criado por um banco que buscava definir onde investir para ganhar dinheiro rapidamente.
A reunião de Ecaterimburgo não produziu frutos visíveis, além de estabelecer o próximo encontro do grupo para o ano que vem no Brasil. Nem era preciso. Os quatro países têm um lugar importante no planeta de hoje pelo que são e, também, pelo que fazem em meio ao colapso da economia mundial. Concentram 40% da população mundial, 28% do território e quase 25% das riquezas de todo o globo. Com o mundo desenvolvido no fundo do poço, os Brics respondem por nada menos que 65% do crescimento da economia. Padrinho intelectual do bloco, ONeill calcula que, entre as 0 maiores empresas do mundo, 53 pertencem aos Brics.
O encontro dos Brics ocorre num desses momentos de virada histórica, em que o mundo dá a impressão de assumir outra fisionomia. Na diplomacia, assiste-se a uma perda da hegemonia americana. Não se acredita que os Estados Unidos perderão a condição de maior potência global, até porque sua economia, sozinha, ainda é quase o dobro da soma dos Brics. Mas a maioria dos estudiosos crê que a influência de Washington tende a ficar menor, ao longo do tempo. Nas últimas décadas, a riqueza mundial iniciou um processo de deslocamento do Ocidente para o Oriente, numa correnteza que manteve seu curso, ainda que em menor velocidade, após a quebra de Wall Street.
Dos quatro Brics, os dois maiores, China e Índia, são asiáticos na geografia e na história. A Rússia tem uma porção europeia e outra asiática. O Brasil é o único país do grupo que se encontra no Novo Mundo, mas seu desempenho se explica pela capacidade de se unir ao crescimento asiático pela exportação de commodities numa escala imensa e variada. Outra diferença é militar. Fora o Brasil, os três parceiros têm arsenal atômico. "Há uma tentação de considerar o movimento dos Brics como um jogo de equilíbrio de poder, de contenção do poderio americano", disse a ÉPOCA o ministro de Assuntos Extraordinários, Roberto Mangabeira Unger. Ele afirma que os Estados Unidos têm dificuldade de imaginar um mundo em que não possam exercer a função de potência dominante e a diplomacia americana vê a perda de poder como uma anarquia perigosa. "Construir uma ordem nova pode ser um caminho dessa escolha", diz. "Qualquer convergência entre esses países influencia decisivamente o futuro da humanidade. Esse assunto deveria ser o tema central do debate político brasileiro."
O tema mais barulhento abordado no encontro foi a substituição do dólar como referência global nas transações comerciais. Desde o ano passado, chineses e russos batem nessa tecla. O enfraquecimento da moeda americana nos últimos anos s compromete o poder de compra de quem tem dólar guardado. O Brasil engrossa o coro dos insatisfeitos. Quer encontrar formas de diminuir a dependência do dólar no cenário internacional. Já compartilha experiência assim nas trocas com a Argentina, cujas compensações podem ser firmadas em real ou peso. Mas o ritmo ainda é lento, até porque o principal avalista da ideia tem outros interesses. Ao mesmo tempo que incentivam a substituição gradativa do dólar, os chineses também têm a perder. Donos de mais de US$ 1 trilhão em títulos públicos americanos, eles pagariam a conta de uma desvalorização apressada e desorganizada.
A reforma das instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, também mereceu destaque em Ecaterimburgo. Depois de lembrar que essas instituições nasceram para, entre outras coisas, ajudar os países em desenvolvimento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que, com a crise instalada na fatia rica do planeta, não faz sentido deixar tudo como está. "Parece que o FMI e o Banco Mundial não têm as soluções que tinham quando a crise era mexicana, brasileira ou russa", afirmou. Lula e seus colegas do Bric também querem maior participação de países emergentes no FMI. Acham que é um clube dominado por Estados Unidos, Japão e países europeus, ambiente pouco amistoso para forasteiros menos endinheirados. Há duas semanas, o governo brasileiro anunciou um empréstimo de US$ 10 bilhões ao FMI. A Rússia também se comprometeu a emprestar ao fundo.
Caso a sigla consiga sobreviver aos próximos solavancos da economia mundial, e a boa saúde de seus protagonistas seja mantida no futuro, não faltará assunto para justificar novos encontros, como mudanças climáticas e valorização dos biocombustíveis. Um debate importante envolve a política de segurança no planeta, debate em que, até o último dia do governo George W. Bush, os Estados Unidos julgavam ter direito à primeira e à última palavra. O Brasil e a Índia se empenham em tomar assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, em busca de prestígio diplomático e algum poder de influência. Mas esse assunto não interessa nem à Rússia nem à China. Os chineses temem que a expansão do Conselho dê chances ao Japão, seu inimigo histórico. Os russos simplesmente não querem dividir poder.
Apesar de muitas semelhanças, os Brics também acumulam diferenças consideráveis - a começar pela economia. O forte do Brasil são os produtos agrícolas. Os russos são pródigos em gás e petróleo. A Índia se destaca na prestação de serviços. A China, em produzir manufaturados a baixo custo. Em grandes negociações internacionais, dificilmente todos dançarão na mesma melodia, muito menos no mesmo ritmo. Na última reunião da Organização Mundial de Comércio, o Brasil se opôs à China e à Índia quando a abertura comercial foi à votação. Com um agronegócio poderoso e exportador, o Brasil batalha pela abertura de mercados. Com uma agricultura familiar que depende de subsídios e barreiras às importações, indianos e chineses estão no campo oposto.
Os sorrisos fotográficos da semana passada não devem diminuir os conflitos entre China e Índia - tão intensos que parte da fronteira entre os dois países é militarizada. Algumas batalhas foram disputadas por territórios na região. A China também já se estranhou seriamente com a antiga União Soviética. Travaram duas guerras até os anos 60. Nem de longe se pode dizer que a desconfiança existente foi totalmente dissipada. Dadas as tensões nos Brics, o jornal londrino Financial Times fez severas críticas à reunião do grupo. Em editorial, afirmou que os Brics são apenas mais uma sigla em busca de um propósito e sugeriu que os encontros dos líderes serão mais um palco para falação, assim como G20, G8, G7 e G2. Em relação à declaração de Medvedev - Ecaterimburgo se tornara o "epicentro do mundo" -, o Financial Times disse: "É uma descrição ridícula da reunião de um grupo que deve sua existência ao acrônimo criado por um economista do Goldman Sachs".
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